Frederico Mendonça de Oliveira
“Ó Maria, veja o que transcrevi de uma notícia de primeira página em jornalão!”, e nosso herói passa a ler em voz alta um texto em que se exercita em sua tarefa de jornalista: “Em João Pessoa, um aposentado de 80 anos era dado como morto. De repente, já posto no caixão, apresentou mobilidade vital, momentos antes de se iniciar o velório. O protagonista da situação era Pedro Porcino da Silva, 80, morador da zona rural de Pilar, e ocorreu com ele um caso raro na medicina: catalepsia, ou perda temporária de sinais vitais. A família viveu momentos de dúvida e emoção, logo tentando recorrer à Justiça, a filha Celma declarando à imprensa que 'A gente está muito feliz, mas a gente quer justiça. Isso não se faz com ninguém'". "Que achas, ó linda?”, pergunta Manoel a sua deusa, que o contempla com olhar matreiro, na expectativa. E Manoel prossegue; “Daqui por diante mudo o tom do texto, assumo o coloquial crítico, particularizando o discurso: 'Pois o cara estava duro e frio: estaria morto, pois. Quem o examinou – parece que mal, sem muita atenção, ou nenhuma, apenas empurrando o trabalho com a barriga – passou logo um burocrático atestado de óbito. A responsável por tal bobeira foi uma médica de Itabaiana. O idoso teria sofrido infarto fulminante, acometido de dor terebrante, sucumbindo em seguida. Mas o inesperado veio logo depois'. Segundo o jornal, "Três horas após chegar ao necrotério, quando estava sendo preparado (embalado para o velório e para descer ao túmulo), seu Pedro se mexeu no caixão". E volta Manoel: 'A família, até ali empenhada em aviar o defunto para o destino de praxe, deparou com inversão abrupta de fatos: o defunto não prosseguia defunto, reassomava no mundo dos vivos. Instalava-se um intenso quadro conflitante', conclui Manoel cofiando o bigode grisalho e rebelde, herança de seus ancestrais árabes. Enter.
“Pois veja, ó Maria, como o redator circunstante conduziu bem o texto: ‘Na manhã seguinte, seu Pedro foi transferido para a UTI de um hospital em João Pessoa, em estado grave e coma induzido. Nos dias seguintes ele surpreendeu a equipe médica. Após receber alta, o idoso deve comemorar com a família o aniversário de 80 anos, completado dois dias antes de ser dado como morto’. A conclusão da matéria é impecável, ó Maria, é até musical, um texto fluido, fechando com valores de fábula, teor de happy end equilibrado e vertical, só deixando dúvida quanto à temporalidade: ele recebeu a alta e deve então comemorar ou comemorará depois de recebê-la? Mesmo assim, dá alegria na gente ver um irmão brasileiro na Paraíba esgrimindo uma tão clara digitação!”, festeja Manoel divertindo sua Maria, que tem um terno olho nele e outro no gato, que chega ondulante e carismático. E a manhã se tinge de cores alegres, também ao sabor do Rob Madna Trio, que esbanja elegância no rádio traçando com delícia Fallin’ in Love with Love”, de Rogers e Hart, jóia do século passado, coisa de tempos de uma ainda viva civilização. Enter.
“A ressurreição é uma questão sempre espantosa, porque tema de essência para os vivos que consideram a inevitável morte, contingência inescapável... e, se algo balança os que enfrentam uma leitura profunda do Evangelho, é Lázaro. Que o Cristo seja o Deus encarnado, isto é uma coisa; quanto a Lázaro ser fato ou metáfora, aí todos oscilamos. Estaria ele catatônico, e teria ‘morrido’ justamente para que se cumprisse a Lei, para que o Cristo o chamasse de volta, parecendo isso o prodígio dos prodígios aos olhos dos vivos e para desespero dos fariseus, que já tramavam a morte do Homem? Pois vá: se o ‘camelo’ a que se refere o Cristo na parábola do homem rico hesitando em segui-Lo não é o animal, mas a baita corda com que se amarravam embarcações àquele tempo, com isso abre-se uma perspectiva no que se abordam os textos dos evangelistas, que podem estar cifrados para leigos... Veja: andar sobre as águas, fazer parar a tempestade, multiplicar pães e peixes, tudo é deslumbrante ao pé da letra tanto quanto sugere um encantado e precioso subtexto. O diabo é podermos penetrar nisso... mas a ‘ressurreição’ de 'seo' Pedro, além de ser para mim o primeiro caso de catalepsia revertida registrado em imprensa – conhecia isso de relatos, quase sempre anedóticos –, traz em si um vírus do grande mistério. E a todos encanta como experiência, acaba de algum modo virando festa para os envolvidos com o fato...”, considera Manoel, enquanto o rádio agora dá notícias do vaivém envolvendo nosso novo deputado, o palhaço Tiririca. Enter.
“Eis aí: falamos sobre ressurreição, e Tiririca adentra o recinto com toda a contradição que envolve seu ingresso na ‘vida política’ da Pindorama... e agora temos outra questão: sob o impacto da estrondosa eleição deste palhaço, morre ou renasce o Legislativo e a instituição política brasileira como um todo? O fato é que está instalado um conteúdo de limiar, de extremo, algo acabou e algo começou através de sufragar este mestre da baixa estima... Na verdade, algo da voz de Deus moveu os dedos dos eleitores para eleger o absurdo... porque de absurdos em cascata grossa todos andam fartos, e eleger Tiririca não passou, claro, de uma bofetada nas nádegas faciais desses engravatados que depravam o Legislativo – e não só o Legislativo, óbvio... então irrompe o efeito Tiririca sendo sugerido como remédio salvador porque absurdo, como se todos o usassem como placebo de alto impacto justamente por se saber ser inócuo, a partir do próprio slogan do candidato”, fala meio consigo Manoel, enquanto Maria se ocupa de receber os afagos do gato. Enter.
“Ora, Manoel, a catatonia já tomava o Legislativo há décadas..., e a eleição expressiva de Clodovil e de Agnaldo Timóteo, dois antiparlamentares por definição, décadas atrás já sinalizavam a descrença do eleitorado ante a intangibilidade apresentada pelos ‘parlamentares’, esses seres de outro mundo, outro idioma, outro ‘princípio moral’ tão diverso do nosso... e com isso víamos uma como que metáfora da necessidade de alterar o conteúdo da massa humana presente naquela pinóia. Claro, não eram os seres indicados para minorar ou alterar significativamente a deterioração já presente naquela massamorda parlamentar. Mas, vá lá, era um protesto, era uma piada, uma provocação, até para revelar que tipo de conceito os eleitores guardam a respeito dos profissionais da tramóia em que se transformaram os políticos em geral. A necessidade explicitada por todos é e vem sendo dar um choque para ressuscitar a instituição... mas todos sabem, ai de nós, da irregenerabilidade daquilo, e que nem uma droga do tipo ‘levanta-defunto’, como um Tiririca eleito por milhão e quatrocentão de votos, é capaz de fazer com que aquele covil desperte e volte a andar...”, emite Maria por entre seus lábios suaves, incapazes de deixar passar por entre eles uma palavra má, embora de tempos para cá se permitindo articular fortes conceitos. Enter final.
“E agora querem porque querem achar alguma coisa que ‘impeça’ o palhaço de integrar o corpo – ou o ‘corpo’ – de legisladores, talvez porque a repercussão da vitória eleitoral de um palhaço em nossa Câmara seja depreciativa para nós no Exterior... ‘Nós’, quem?? Quem pensa que pode recombinar categorias de valor tão opositivas como a do poder e a do povo numa coisa só? Doeu em vossos tobas elegermos o palhaço, ó pás? Bem, então parece que teremos alguma ressurreição por aí, porque o remédio Tiririca já começa a fazer efeito!...”, conclui Manoel entre gostosas risadas com sua Maria, e ei-los enlaçados por olhares arrulhantes... E viva Santo Expedito! Oremos. Té a próxima, babes!
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