sexta-feira, 25 de junho de 2010

Manoel, vuvuzelas e apedeutismo

Frederico Mendonça de Oliveira

Lá vai Manoel pelas ruas do arraial nestes dias de Copa, e a zoeira que eventualmente se manifesta põe nosso herói de sobreaviso: “Bestas excitadas parecem perigosas!”, reflete. Passando pelos pontos onde telões exibem essa porcariada de futebol globalizado, Manoel verifica: até de longe é possível ouvir aquele zumbido que lembraria um enxame de mangangás, ou mamangavas, aqueles abelhões pretos solitários que fazem a polinização do maracujá, entre outras tarefas benéficas. Lamentavelmente, não são apídeos os responsáveis pelo som de enxame, mas as tais de vuvuzelas, que nesta Copa alcançaram outro valor no comportamento das torcidas. Do meio desse som assemelhado ao dos agigantados e nigérrimos apídeos, emerge a fala roufenha e mesmo cavernal do Galvão, um pobre coitado bobalhão que vive a fantasia de ser o locutor esportivo top da Globo. E tome ensopado de vuvuzelas com Galvão, enquanto rola planeta afora uma rejeição maciça ao locutor concomitantemente a uma verdadeira consagração da bizarra vuvuzela. A raiz vuvu significa “soprar” ou “pôr a boca em algo” (êpa!), e o sufixo zela denota “objeto comprido e oblongo”. Já se usava essa titica de há muito em terras tupiniquins, mas era só um espírito de fazer zoeira, esporro. Teve até uma turma que comprou milhares dessas porcarias para distribuir aos que entravam no Maracanã, lá pra 1981, para assistir ao show do Sinatra. Não colou: ninguém soprou aquelas tubas durante o show, mas muitos as receberam de graça, e as levaram consigo para zoar alhures. Agora, as cornetas esporrentas viraram vuvuzelas, e essa Copa de retrancas renhidas, pouca criatividade e resultados mirrados se arrasta ao som delas, mostrando um avanço da irracionalidade compatível com a destruição que mundialmente avança contra a música, basta considerar que não se pode mais ligar um rádio receptor, pois através dele só se difunde lixo. Enter.
Lixo, lixo e mais lixo. O mundo está virando lixo. Não só o lixo que bóia no Pacífico e alcança extensão maior que Minas, São Paulo e Goiás somados, mas também o dos Executivos corrompidos e postos no comando de Estados esvaziados; dos Judiciários completamente viciados – se o STF não exige rigor na prática judiciária, que esperar de quê? Ele nem precisaria existir se exigisse rigor... –, vide o desalento dos advogados, vide a máxima que descreve a Justiça hodierna: “Antes, peituda e vendada; hoje, peitada e vendida” (referindo-se a Têmis, deusa da Justiça); dos Legislativos abarrotados de picaretas legislando em causa própria, mamando montanhas de dinheiro em salários, benefícios, cartões funcionais e, claro, vivendo de praticar o que mais rende: corrupção, desvios, mamatas, panamás, propinas, e até chegando a registrar motosserramentos de desafetos por parte de parlamentares, vide Hildebrando Pascoal. Que, milagre dos milagres!, pagou por seus crimes!..., coisa pra lá de rara nesse país-cloaca. E agora o CQC mostra aquele escândalo de “parlamentares” – não passam de salafrários e escroques assumidos, calhordas, pilantras, moleques, sacripantas, biltres, degenerados convictos! – que assinaram a favor de incluir uma garrafa de cachaça no que seria a cesta básica do brasileiro. Questionados pela repórter Mônica Iozzi, do CQC, quase todos queimaram no golpe e alguns partiram pra violência verbal e mesmo física. Um deles, o deputado José Tático, do PTB de Goiás, além de tratar a repórter com rispidez, depois se saiu com um “sua bunda”, quando já dentro do elevador. A Mônica, que não ostenta um popó avantajado, levou essa. Depois, tendo sido abordados os deputados Eduardo Valverde (PT – RO), Felix Mendonça (DEM), Lupércio Ramos (PMDB – AM), João Dado (PDT – SP) – que se negou a assinar a inclusão da cachaça na cesta básica e ainda pagou uma, de que é de lei ler antes de assinar, dando lição de retidão – e finalmente Nelson Trad (PMDB – MS), um terceiraidade iracundo e truculento, que agrediu fisicamente a repórter e o cinegrafista, e assim se registrou mais um documento que revela que tipo de gente ocupa o Legislativo sob o pretexto de representar os interesses do povo que a elegeu. Enter.
E Manoel contempla tudo isso enquanto rola Brasil x Portugal, um jogo em que a bola parece quadrada, porque rola mas não se define nada, só jogo duro, feio e violência pra lá de estranha. Maria prossegue alheia ao Brasil conflagrado em torcida estúpida, mobilização irracional que pretende uma vitória que nada nos trará senão um caneco e mais retrocesso social na caudal dessa titica. “Ó Maria, tu precisas ver quanta porcariada nessa peleja! Nossos patrícios estão imbuídos de travar os brasileiros, não lhes dão espaço, embora também não tenham até agora feito nenhuma finalização considerável. Mas o Galvão tá lá, dizendo que Portugal se fecha (é) na defesa – ele não aprende, se é que se tocaria disso – e o Português vai indo pro penico, tendo principalmente a TV como detratora do idioma”. E Maria, a custo se desconcentrando para atender à fala de seu apaixonado marido, crava nele seus olhos ainda banhados do texto que ela ataca na raça. Bastou olhar, já está respondido. Maria nada vê senão coisas sérias e belas, radicalmente decidida a destoar do auê generalizado. E Manoel surta de insights sobre essa conjuntura em que parece que todos somos empurrados para o abismo da História. Enter final.
“O idioma é um retrato da alma social do homem, ó minha linda. O homem que fala com sinceridade e que preserva o linguajar é o homem que vê o social e trata de edificá-lo. Quem depreda o idioma depreda a si mesmo e ao social a reboque. E essa alteração ortográfica atende à depredação de conteúdos, ó linda. Veja que agora se excluem acentos nos ditongos abertos, e os que virão terão dúvidas em saber se alguma ideia pode ser bonita ou feia. Por que empobrecer o que era correto para lançar uma generalização que iguala sons diversos? Porque o acento é incômodo, pode ‘cansar’ a beleza dos emergentes (em quantidade, claro) proletários que vão transformando nossa língua num caos semântico e gramatical?”, considera nosso heroi, cujo interesse no Brasil foi transformado em sonho de cidadania, sonho frustrado a cada minuto, cada hora, cada dia – e assim por diante. E Manoel relembra Oswald de Andrade, que anteviu a depredação do idioma através da explosão demográfica dos desvalidos do conhecimento: “Pra dizer milho, dizem mio; pra dizerem melhor, dizem mió;/ pra dizerem telhado dizem teiado/ E vão construindo telhados”. E o poeta previu também a proletarização que nos transforma hoje numa potência da estupidez e da corrupção, tudo isso apimentado pela barbárie que avança como câncer, generalizando a desagregação humana, política e social. Enquanto isso, uma imensa quadrilha sorve o néctar que seria do povo, e a este é destinada a massamorda, a decadência, a deterioração galopante. “Deu zero a zero, ó Maria, Portugal barrou a seleção de Dunga, e daqui pra frente só aumenta o risco a cada partida”. Sob estouros de foguetes burros, Maria toca o almoço e se mantém pairando acima dessas cretinices. Manoel só contempla. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 788 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 329 dias...