sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Manoel, a imprensa tantã e o idioma da Pindorama

Frederico Mendonça de Oliveira

“Em grande parte de Minas Gerais, ó Maria, e já eu disse isso em outras ocasiões, usa-se corromper o idioma a partir principalmente da preposição. Mas isso vai se generalizando Pindorama afora como outras deformidades, vai transpondo as fronteiras do estado, é como aquilo de comer dobrado sobre o prato, como bichos – gatos são os únicos elegantes, porque comem abaixados e com cuidado e delicadeza – e com a faca pregada na mão esquerda como extensão do membro. Especialmente por aqui, nestas montanhas apinhadas de pongos vestidos, pobres coitados sob o tacão do sistema prostituidor, a preposição é instrumento de estranhos desvios em diversos sentidos. Mais preocupante ainda é verificar que a metástase avança, e já vemos outras comunidades incorrendo na pinóia, a merda se alastra, e o sistema educativo/cultural nem tchuns. Já vemos de há muito essas cacatuas da mídia eructando estupidezes (ou estupidezas, como você quiser: o Houaiss não consigna o plural do termo, que, sendo substantivo, pode flectir) por entre dentes alvíssimos projetando sorrisos indecorosos: uma certa Maria Cândida recebe chamadas de telespectadores e pergunta: ‘Você tá falando DAONDE?’, e assim vai se emporcalhando tudo, tudo virando entulho, rumo ao lixo generalizado. Mas, pensando bem, que esperar? Tivemos na presidência da República por oito anos um apedeuta, desprezando completamente o idioma, e o Brasil tende mesmo é ao abismo...”, comenta Manoel chegando de sua sofisticada oficina, na edícola, onde acaba de consertar uma panela para a sogra. Maria considera, divertida, a retomada do assunto, e já dá trabalho a sua divinal caixa pensante, olhando, linda. E glosa o mote. Enter.
“Pois olhe, ó Manoel, acabo de passar em revista as primeiras páginas dos jornalões, e dói ver o horror das imagens da fúria das águas. É um desconcerto feio, uma desarmonia que explode, um caos manifestado. Misturadas a isso, notícias frívolas, como Ronaldinho no Flamengo, Hebe desfilando com não sei quem, Charlie Sheen (quem é esse tipo?) fazendo farra com atrizes e perdendo gravação, Amie Winehouse com aqueles cambitos de sabiá, aquele semblante meio de babuíno e aquela música reles, e ainda falam de o autor de uma novela chula global contrariar o público e, pasme, registra-se em primeira página o primeiro beijo ocorrido naquela nojeira de Big Brother Brasil. Com um painel desses, dá até para considerar que os elementos estejam propensos a fúria, injuriados com tanta devassidão”, considera Maria diante de tal bagaceira. Enter.
“Mas ainda vem a turma católica pra cima da Dilma”, acrescenta a linda, “cobrando não sei o que, besteirada, coisa do caos, e registram-se opiniões de objetos vestidos . Observe só: ‘Parabéns a Igreja Católica por esta iniciativa. Se nada for feito para impedir o ímpeto dessas pessoas, o país e o mundo entrará em colápso total em breve. Essas pessoas que postam estes cometários aqui, são os pobres coitados que vivem em mundo que não existe, que é irreal, e não tem nenhuma responsabilidade na vida. Vivem como verdadeiros animais. Não respeitam nada e nem a ninguém’. Então, ó Manoel: de cara, uma crase vai pro saco, e fica um a maluco pro leitor; depois, um erro de concordância e um acento em colapso, talvez por influência de lápis; depois um este que deveria ser esse, seguido de uma vírgula entre sujeito e predicado; depois, um tem plural sem acento – talvez os filólogos petistas queiram o fim dos acentos, pra facilitar a vida deles; pra finalizar, uma preposição desnecessária, mas que ajuda a empenar a fala. E vêm outros comentários, dolorosos em sua forma: ‘Mobilizar a opinião pública contra instituições sérias que defendem suas opiniões, é simplesmente querer atestar insanidade aos cidadãos de bem’. Esse aí, meu caro Manoel, é possivelmente esquizofrênico: bota vírgula entre oração subjetiva e principal com valor predicativo, ou seja, racha a si próprio ao meio. E outro ainda: ‘Incrível, mas acho que essas pessoas não tem mais o que fazer. Que tal usar toda essa energia para ajudar o próximo, hein? Milhares de pessoas estão precisando de ajuda nas cidades afetadas pelas chuvas.Ah, me esqueci que ser católico não tem nada a ver com amar o próximo...’... Veja só: uma troca de tapas verbais estúpidos, recheados de mancadas: aparece de novo um tem plural sem acento; a forma hein é rejeitada pelos filólogos, que preferem hem; e o fecho é com um escorregão conceptivo: esquecer, em forma pronominal, impõe o uso da preposição de”, comenta Maria com olhar sério e um tanto ausente, superior mas sem empáfia. Enter.
Segundo os iniciados, a convulsão por que passa o mundo é o começo do Armagedon, que seria o evento escatológico, o já temido fim do mundo ou dos tempos; ou, para outras linhas de pensamento, convergentes, a grande purificação. Manoel e Maria, dois estudiosos contumazes, dois apaixonados um pelo outro e pelos estudos, tanto quanto pelos gatos e pela criação de Deus, percebem a grande deterioração em andamento, a marcha da derrocada, e nutrem no coração tanto a esperança confiante na Inteligência como sentem no peito um aperto por pensarem na grande destruição que se avizinha, e que iniciará uma nova era. Então dói nestes dois corações a desagregação de tanta beleza organizada pela mão de Deus e saber que tudo isso, os pássaros, as matas, as flores, os animais, tudo se esfará em fogo e lama, e que dessas formas nada restará. A sequência crescente de desastres ecológicos e os desencarnes coletivos são os sinais do grande desenlace. Também a arrogância dos templos do capitalismo apoiado na usura, a violência das construções de dimensão gigantesca, o desmedido tamanho de aviões que desafiam a gravidade ou de navios que ultrajam a face dos mares, tudo isso a serviço do lucro, do supérfluo ou do desvio da mente humana para a adoração da matéria, tudo será tragado pela fúria dos elementos. Maria e Manoel contemplam tal perspectiva com reverência à grandeza divina, e Manoel considera a irreversibilidade da grande virada lembrando Pietro Ubaldi: “De tudo só restará a idéia!”, cita ele para sua Maria quieta e bela, milagre que Deus deu a nosso herói. Enter final.
“Ó Manoel, nóis vai no supermercado amanhã, que nem nós feiz antes de ônti, mas se ocê quer que eu num vô, traiz pra eu o que era pra mim trazê!”, brinca Maria para um Manoel encantado, pois ela não é dada a troças, especialmente focando terceiros. Mas o amor à correção os faz travessos eventualmente, e os que depredam a si e ao idioma nem sonham que alguém os avalie em oculto. Uma linda saíra azul bica a banana no telhado da edícola sob o olhar vigilante de seu par, azul e negro, o céu sorri. E viva Santo Expedito! Oremos. “Semana que vem nóis se fala!”
Ah! Vale lembrar: estamos sob censura desde 11/04/08, aliás mantida por Gilmar Mendes, e a restrição vai totalizando 983 dias. Abraço pra turma do Estadão, há 532 dias também sob mordaça...