sexta-feira, 7 de maio de 2010

Manoel, mandruvás, zebras e o “posso ajudar?”

Frederico Mendonça de Oliveira

“Diabos me carreguem, mas não há mais como entender e como dar rumo para este mundo, ó Maria!”, comenta o perplexo Manoel com sua concentrada Maria. Nosso herói acabava de chegar do centro, onde fora com o amigo resolver as pinóias da tarefa demissional e da aposentadoria dele. Pois o percurso pelo arraial, por mais que se alcance alguma abstração, sempre pesa – no mínimo! – do ponto de vista estético: a “paisagem humana” petista, ulterior consumação de uma visão de degenerescência em curso desde meados da década de 80, quando a MPB foi preterida em função da introdução da lambada, do agrobrega e do pagode pasteurizado, se instalou de forma opressiva, como se fora uma invasão de hordas de bárbaros, aparentemente inofensivos, mas indiscutivelmente temíveis. E nosso herói queda avaliando os conteúdos do “cenário social”, e eis que uma constatação preocupante o invade: a da irreversibilidade desse quadro, a partir inclusive de considerar a irreversibilidade da coisa política, visível mas na verdade escancaradamente dissociada do compromisso com o social. “Se a política virou as costas para o que seria uma intervenção benéfica no social, a derrocada é obrigatória!”, reflete entre dentes este pensador exilado de todo, mas assumido mais que nunca como pensador. Enter.
“Ó Maria, já começa tudo ao vermos a estética manifestada nas ruas. Quando estávamos no Rio da década de 80, o emporcalhamento dos muros, paredes ou qualquer espaço onde coubesse uma pichação era a imagem de um caos, de um desarranjo visível através de um discurso enigmático, indecifrável mas desgraçadamente presente de maneira sufocante, torturante. Era o grito dos excluídos lançado nas paredes, nos muros, nos monumentos arquitetônicos, e tudo não passava de uma desesperada tentativa de se fazer visto por todos, já que estava determinado pelo Estado, naquela ditadura amolecada, que aqueles seres jamais seriam ouvidos. A exclusão era algo imposto, implacável, e a macacada revidava usando paredes e arquitetura em geral como suporte para seu protesto, escolhendo a violência visual como discurso. Puta merda!, falei bonito!”, considera alegremente Manoel vendo que sua linda Maria até estampava nos olhos e no canto da boca um sorriso divertido de aprovação. “Pois é: se naqueles tempos ficávamos penalizados e até mortificados com enfrentar aquele emporcalhamento do espaço social aberto, e se a pichação parece que hoje caiu de moda, eis que agora a coisa parece que virou. As pessoas andam emporcalhando é a si mesmas, começando com essa mania estúpida de tatuagem, passando pela bizarria da auto tortura dos piercings, desembocando no mau gosto do que antes era um vestir-se, apenas. Andamos pelas ruas e entramos em supermercados e parece que estamos em outra dimensão, como se tivéssemos o tamanho de insetos, e nos vemos entre mandruvás, aquelas lagartas providas de anéis coloridos, aliás para espantar predadores. E se saímos dessa dimensão e voltamos ao tamanho normal, veja só, de repente nos vemos entre zebras, como se integrássemos a vida animal nas planícies africanas: nesse caso, seríamos gnus ou impalas, pois de repente nos vemos misturados a zebras...”, conclui com jeito crítico um tanto pra comédia nosso herói, diante do semblante receptivo de sua Maria. Enter.
Nosso herói apenas considera a maneira bisonha como os objetos vestidos hoje se cobrem de roupas. Uns parecem espantalhos, se vestem de maneira tal que lembram os palhaços cuja extravagância no vestir faziam rir platéias nos circos do passado. Hoje não há mais circos como outrora, mas as ruas e espaços de convivência das comunidades viraram picadeiros coalhados de palhaços. Outros optam pelas camisas listradas, algumas em cores berrantes, outras apenas “fatiando” quem as enverga de maneira a produzir certo movimento visual, que as faz mais visíveis. Manoel lembra o velório do último coronel do arraial, que morreu de indigestão. O corpo estava colocado no altar, os pés voltados para o fundo do templo. A câmera grande angular estava a uns metro e meio de altura, captando toda a nave apinhada de gente e, em ângulo de grua, fazendo um grande plano de conjunto, pegava a imagem desde o altar até a porta do templo, lá ao fundo. Foi quando entrou um arraialeiro bem conhecido, grandalhão e bobalhão, e veio de lá da porta se chegando em direção ao caixão em meio ao poviléu. A camisa dele era listrada, e de uma extravagância tal de cores e dimensões que roubou totalmente a cena do tão badalado velório. “É mole?”, perguntava Manoel pra sua amada, que tinha os olhos pestanudos espetados no ar relembrando em riso suave as imagens trazidas por nosso herói. Enter.
“E esta mania de virar zebras, onde vai parar isso? Eles se acham muares, asininos, e por isso assumem esse visual? Ou será que estão é metaforizando serem presidiários do Sistema, envergando roupas de listras horizontais pretas e brancas?”, e a linda Maria se ri gostosamente, embora jamais deixando sua contenção de nobreza, elegância natural dela. “Parecem doidos, como que desejando virar um troço, como se a camisa devesse ser a identidade deles, que parece terem assumido a perda da identidade facial!”, farpeia nosso herói, e Maria fecha a fisionomia, como que aprofundando uma compreensão carregada de piedade e preocupação. Enter final.
“E tudo rima, ó minha linda: se entramos num diabo de loja, lá vem de assalto a inconveniente pergunta: “Posso ajudar em alguma coisa?”, como se não soubéssemos ler, não soubéssemos escolher, não soubéssemos o que queremos, como se fôssemos ninguém. Mas, ó pá, pensando bem, os seres que entram hoje em lojas são, em sua grande maioria, consumidores imbecilizados, e o que interessa é o ato, que é intensificado pela ação do vendedor, por sua vez ávido em ganhar o seu...”. E toca a campainha, e lá se vai nosso herói receber o amigo já esperado. E Maria volta a seus fazeres domésticos pensativa, com os gatos a lhe roçarem as pernas roliças e harmônicas. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 758 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há muitos meses.