Frederico Mendonça de Oliveira
Bem, eu dizia que esgotava-se o prazo da cautelar e era hora de entrarmos com a ação principal, e que então começamos a tentar falar com nossos advogados, de quem nos afastáramos por alguns dias por conta de viagem com o Gonzaguinha. Pois nada: os caras não atendiam nem nos telefones residenciais nem no do escritório (e naquela época não existia bina). Doutores Yrapuã e Hamilton. Aliás, indicação do nosso colega Luizão Maia, baixista então da Elis, criatura finíssima não só tocando baixo Fender especialmente se no samba, mas também porque era simples e simpático ao mesmo tempo que autoridade musical e amigão geral. Pois nada de advogados. Como já lembrado, ficamos a ver navios, até porque, plantados na porta do Fórum do Rio, víamos embarcações de grande porte na Baía de Guanabara: o Fórum fica perto da Praça XV. E nunca mais vimos os advogados indicados pelo Luizão. E não havia por que procurá-los, se eles não nos procuraram para explicar coisa nenhuma. Ficou desse tamanho, e fomos “em trás”, pois em frente não poderíamos ir mais. Enter.
Por essa mesma época, nosso não mais tão próximo Gonzaguinha alcançava a “grória”: fazia o show consagrador no Canecão, Rio, lotando a casa por duas semanas seguidas de quinta a domingo. Falei “grória” porque aquilo era uma farsa em quase todos os sentidos. Era como uma grande vitória... material. Uma reunião de gentuça copiosa e ruidosa que preenche espaços onde quer que apareçam os eleitos pela mídia; um ou outro apreciador de canções passadas do cara e que ainda se mantinham fiéis, embora já apresentando ceticismo diante do espetáculo da bovinidade mugente comprimida naquela casa militante para o sistemão; socialites no gargalo do show, aparecendo para o palco ao captar a rebarba da luz esfuziante daquela encenação. Numa dessas noites estava ali, sob a ribalta, o José Hugo Celidônio, vip de carteirinha à época, tido como gourmet, e ele comandava uma mesa em que estava o Simonal, sempre com aquele olhar de mormaço e condescendência, mesmo que já de há muito esmagado pela armação que o estraçalhou. Simonal deveria pensar que faria melhor no gogó o que ele via sendo feito ali, e olhava com um semblante entre o desgosto despeitado e um questionamento petulante da qualidade real daquilo. E rolava aquele show business tupiniquim, aquela encenação de triunfo midiático, e a platéia – ou pratéia? – ululando estrondosa sem saber por quê. Essas platéias, ou pratéias, são como um jovem gato que tive aqui, que chegou depois de outro mais velho, este já senhor do local; quando eu acendia bombas de São João para fazer calar a cachorrada enlouquecida no vizinho, o gato mais velho, ouvindo o chiado da bomba acesa, saía em disparada, para fugir da explosão; o outro, inexperiente, saía correndo atrás, simplesmente porque o mais velho disparou fugindo de algo. Era de matar de rir ver os dois derrapando na dobra da casa pra ganhar o corredor lateral. Até nisso gato é elegante. Enter.
Então já estávamos fornicados de tudo: além de ficarmos no chão perdendo a causa, víamos o Gonzaga ascendendo perante a massa ignara e ganhando ares de superstar, já nos olhando com educação de quem atura o outro. O show, uma merda. Nada do entusiasmo de estar levando uma mensagem para a juventude resistente; nada mais daquela proximidade de quem come prato feito em botequim depois de carregar equipamento e antes de passar a tarde ensaiando pra tocar pra publicozinho pouco mas fiel e consciente. Agora era o grande negócio, o estrelato, a adoração cega do ícone, uma mensagem de qualidade artística indiscutível mas confeitada para adocicar a boca sedenta e amarga, quando não babosas, das massas ovinas e balantes. O nosso moleque Gonzaguinha, ou aquele anterior Luís Gonzaga Jr, era recebido no andar superior dos ícones ungidos do sistema, aliás também dos que se venderam para que as transnacionais do disco estraçalhassem nossa cultura e nossa arte para comprimir tudo no nicho da canção popular. Era triste considerar a possibilidade: seria possível que os anos de luta tenham sido usados unicamente para uma glorificação dentro de um sistema prostituidor? Estaria o Gonzaga consciente dessa armação, e terá ele trabalhado malandramente para a sua redenção pelo sistema?? Seria todo o discurso anterior um expediente? Enter final.
Meu coração dizia que NÃO! Comigo eu via que tudo seria o correr dos fatos, que ele apenas foi levado, não haveria escolha. E, já que ninguém questionava pô nenhuma, ficou assim. Foi tudo triste, melancólico e patético. Gonzaga estava nas nuvens, seguro, elegante, senhoríssimo de si; nós, amuados, víamos quase uma década indo pro saco, dando em nada. Lutáramos para assistir outrem, e nosso suor servira para deliciar massas ovinas balantes. Mas o NÃO dito por meu coração se materializou em tragédia: sete anos depois de se alçar ao olimpo dos intérpretes da MPB, Gonzaga consumaria o que buscou durante anos ao praticar direção perigosa constantemente: depois de um show no sul do Paraná, entre as cidades de Pato Branco e Francisco Beltrão, nosso herói se imolou ao volante contra a traseira de um caminhão. Durante o show, ele pediu à platéia que o ajudasse, que ele precisava disso (??). Estaria antevendo a morte e solicitando solidariedade espiritual? Terá morrido ali o ícone da mídia ou o verdadeiro cantor e compositor em quem se depositou tanta esperança por ele falar contra a ditadura e preconizar uma redenção social? Lá do outro lado a turma sabe. Mas pareceu que ele mesmo repudiou a grória e toda a encenação cínica em que se meteu. E uma brilhante carreira acabou na traseira de um caminhão que parece nada ter a ver com o peixe, mas que entrou na história como quem conclui um enredo que não entendemos. Não mesmo? E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!