sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Manoel: “Tudo são cinzas!”

Frederico Mendonça de Oliveira

Passados os vazios dias de carnaval que já foi um dia Carnaval, Manoel queda desolado vendo o Brasil de volta a seu destino trágico. E considera aquela letra de samba que tanto foi repetida por tantos brasileiros, milhões, quando a beleza ainda marcava os quatro dias de Momo: “Você partiu, saudades me deixou, eu chorei/ nosso amor foi uma chama que o sopro do passado desfaz/ agora é cinzas, tudo acabado e nada mais”. E olhando para sua amada Maria, ele pensa nos tempos em que os dois, que ainda não se conheciam, viviam carnavais lindos,cada um na sua vida... e imagina como seria adorável hoje viverem juntos a folia poética do passado: “Seria um aditivo para nosso amor tão profundo, seria uma possibilidade de festejá-lo em meio à alegria coletiva que reunia pessoas pensantes, pessoas que pensavam o Brasil, como nós!...” E uma indizível tristeza passa pelo coração de nosso herói, agora certo de que nesta vida a beleza está completamente ameaçada, e dando lugar a uma feiúra crescente e ameaçadora. E aí nosso herói pensa no carnaval do Planalto. Enter.
“Carnaval no Planalto? O Planalto já é um carnaval de corrupção faz tempo! E é como o riso das hienas: além de não ter alegria, pressagia orgia sanguinária!...” E agora o arquiboçal Arruda mostrou que “uma vez corrupto, corrupto até morrer...”, e as bestas da imprensa obedecem aos que mandaram publicar a cana em cima do cara, e os “leitores” até acham que isso vai mudar alguma coisa. E Manoel se inquieta: “Não estará esta prisão acobertando alguma outra merda maior? Afinal, esse monstrinho já vinha fazendo das suas desde o episódio do painel do Senado... e não vão dizer que as loucuras do patife não eram do conhecimento dos seus pares e dos engravatados em geral...”. Pois bem, é a mesma velha merda, “the same old sheet”: brasileiro pobre é como lombriga, se sai da merda morre. E brasileiro rico é lombriga do mesmo jeito, só que não sai da merda grossa. Enter.
E lá vem ano sem beleza , lá vem gastar o tempo e pagar, pagar, pagar, e não se tem mais possibilidade de esperar outro carnaval para limpar a alma, pois carnaval hoje é sujeira e vazio. Mas as coisas boas que restam ainda trazem algum consolo. Não consola ver um salafra como o Arruda preso, não consola ver ninguém preso, na verdade. Consola é saber que ter consciência desse horror que vivemos é muito melhor do que esta por aí vagando como boiada caminhando a esmo... e acreditando que isso é que é a realidade e que faz sentido. Isso não é propriamente bonito, mas consola. Também consola ver que a ação de muitos crápulas acaba acertando eles mesmos, não nós, isto quando eles tentam nos acertar... mas vale lembrar outras quartas de cinzas, outros dias diversos desses de hoje, tão sem conteúdo. Enter.
Vale lembrar o carnaval em que morreu Ary Barroso. Estava o amigo músico de Manoel no Jacarepaguá Tênis Clube, fantasiado de arlequim, rolava o baile e já começara o baile às dez. Aí o sistema de alto-falantes do clube, tão logo rolou o primeiro intervalo, noticiou a morte do Ary. Foi uma comoção em dimensão de impacto. Ninguém se descontrolou, mas no mínimo corações de apertaram e lágrimas encheram os olhos de quase toda a gente. Manoel se sentiu ridículo fantasiado ali, mas olhou para tanta gente também fantasiada e se irmanou a todos. O silêncio doía. Um relato da morte saiu na contracapa um disco alusivo à obra do gênio de Aquarela do Brasil, o verdadeiro hino nacional, e vale a pena transcrever: “Domingo, 9 de fevereiro de 1964, nove e cinquenta da noite: Ary Barroso morreu. A notícia espalha-se de norte a sul, paralisa bailes, silencia foliões, abala o país. Por um momento os tamborins calam, a multidão se entreolha. A Escola de Samba Império Serrano hesita em entrar na avenida. Mas o carnaval não deve parar. Os bailes prosseguem, o povo dança, e na avenida a Escola desfila a sua Aquarela Brasileira. É preciso cantar para vencer o silêncio da morte”. E assim foi no JTC, o amigo de Manoel atingido profundamente pela notícia prosseguiu participando do baile, mas agora sem mais alegria. Ele já estava músico decidido a se profissionalizar. À tarde ouvira, na rádio JB, Azul Contente, de Walter Santos e Tereza Souza, cantada pelo Walter com o grupo do xará Walter Wanderley, aquele som de Hammond B3 com Leslie fazendo com o trompete do Papudinho um lindo uníssono melódico. E ali o amigo de Manoel tomou sua mais importante decisão na vida: largaria o magistério para o qual já estava se preparando e abraçaria a música. Enter.
Pois à noite, ele, que não era de porra de carnaval nenhum, lá estava fantasiado só pra fazer a vontade da família. Tinha, então, 19 anos. E já decidido consigo pela música, não tendo ainda nem falado com ninguém sobre isso, lá estava solitário em meio a uma folia que, se já não fazia muito sentido para ele, agora tinha ficado adversa, depois da notícia da morte do Ary. E o baile se arrastou, as pessoas ainda pessoas pulando pra não deixar de pular, aquela situação surrealista. Todos com o coração fisgado, alguns desolados guardando um silêncio prenhe de constatações, e a banda puxando as marchas, entre as quais a que encantou esse ano, que falava de Colombo, Gagárin, colombina e espaço sideral, e ela terminava dizendo: “Quero ser um Colombo do espaço/ levando colombina em meus braços”. E dava para ver que tinha gente cantando isso com lágrimas descendo pelo rosto... Enter final.
E o baile chegou ao fim, e vieram a segunda e a terça gorda, e encerrando o carnaval a orquestra puxou As Pastorinhas, nostalgia de todos os fins de folia. E dava pra ver a emoção generalizada, as lágrimas descendo por rostos sorrindo comovidos. E o amigo de Manoel nunca mais pulou um carnaval. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!