sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Histórias que escapam aos pobres seres de hoje

Frederico Mendonça de Oliveira

Esse negócio de dizer que atentar contra a cultura de um povo é atentar contra a identidade dele não é balela coisa nenhuma. Pode haver algum macaco sem rabo assumido como objeto vestido que ouse “questionar”, ou “contestar” – o que não muda muito... – pelo simples fato de não ter a mínima idéia do que possa ser cultura, menos ainda o que possa ser identidade de um povo. Macacos sem rabo sentam seu traseiro anuro no sofá e entregam seu destino à TV, e acham isso divino: não precisar pensar é uma dádiva para os que se animalizaram por comodismo, sem esquecer uma forte dose de cinismo nisso. Há também os que, por serem responsáveis por esse atentado, caguem comodamente suas regras e conduzam qualquer discussão sobre o assunto para o abismo em que nos mergulharam a todos nós. São os globalizadores torpes, a quem só interessa desnacionalizar tudo e impor sua própria nacionalidade tribal rígida e uma lei implacável. Pois é. Vamos em frente. Enter.
Acordei outro dia pensando numa canção linda que o Cauby Peixoto gravou em 1958. A modernidade musical já se fazia presente em muita coisa, especialmente pelo trabalho de gente como Lindolpho Gaya, Radamés Gnatalli, Chaim Levak, só pra citar a turma do Rio que ia vestindo a música de maneira diversa do quadrado seresteiro. Acontecia paralelamente o “fenômeno” Maysa, que não passava de um tremendo golpe globalizador anticatólico, e sobre isso falaremos ainda. Mas acordei pensando na linda “Viver sem Você”, de autoria de Fernando César, que aliás emplacou 178 canções gravadas, todas de altíssima qualidade composicional. A canção citada é um beguine, e sua estrutura encosta em termos de qualidade em coisas como I Love You ou In the Still of the Night, jóias da produção do maior compositor americano de canção, Cole Porter – aliás, tarado por beguine. Fernando César seria o Cole Porter brasileiro, e não por querer sê-lo: acontece é que desde sua estréia compondo para Ângela Maria, em meados dos anos 50, deu pra ver tratar-se de um mestre. E a linda Viver sem Você é até registrada nos Google da vida, mas ficaremos sem saber a letra, a menos que tenhamos sorte; ouvir a gravação original, de Cauby, só por milagre; saber quem fez o arranjo para orquestra, só se Deus der uma tremenda mão nessa história. Mas eu tinha 13 anos, já estava pra lá de enfronhado na beleza musical via rádio – ah!, bons tempos!... – e já detectava a grandeza do trabalho dos músicos brasileiros por trás das vozes de plantão em trânsito para a modernidade, que seriam Nelson Gonçalves, Dóris Monteiro, o próprio Cauby, até o Ivon Cury, sem contar a maravilha que era ouvir Núbia Lafayette, com suas tristes e lindas baldas de amor não correspondido tratadas por uma voz emocionada e afinada por Deus. A podridão já avançava, mas ainda tínhamos escolha. Enter.
Maysa estourou com Ouça, faixa que na verdade retrata a vitória do mundanismo sobre um tradicionalismo católico: ela era casada com um Matarazzo, da família paulistana que recebia o papa aqui e era recebida por ele lá. A campanha para o escândalo contra os Matarazzo foi movida pela Manchete, revista dos Bloch, gente nada nada católica. Não que seja fundamental ser católico, nada disso; o que vale foi que o gol sofrido pela estrutura de cultura católica ainda em vigor naqueles dias foi irreversível, e Maysa foi um instrumento. “Ouça, vá viver a sua vida com outro bem/ hoje eu já cansei de pra você não ser ninguém”, faixa introduzida por uma abertura orquestral de cordas simplesmente sublime, entrou como uma avalanche na família brasileira, e seguramente desde então as separações ganharam força, tendo como exemplo a mulher de olhos de gata casada com um aristocrata e que bebia, fumava e cantava contrariando e até mesmo afrontando com ousadia os ditames da grande família tradicional católica Matarazzo. E logo depois Maysa se confirmava intérprete de peso com a obra-prima Meu Mundo Caiu, com introdução também avassaladora, com um trombone – se foi gravada no Rio, o trombonista terá sido o Norato – solando em êxtase uma partitura braba, e as cordas arrebentando em ousadia harmônica, coisa que as batatas de sofá de hoje ouvem sem detectar qualquer valor, muito menos qualidade ou beleza. Enter final.
Tenho pena dessa pobre gente de hoje, sob a fala entoada e tão medíocre de Ivete Sangalo, resultado de uma seqüência triste iniciada por Betânia, vindo depois Gal e Simone. Mas Deus sabe o que faz. Só que as coisas se esgotam. E hoje a feiúra é o tom da vida que nos impingem. Recordar é viver, pois. E viva Santo Expedito! Oremos. ’Té mais, babes...