segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Um lusitano e o Natal no Brasil

Frederico Mendonça de Oliveira

Manoel anda abestalhado, até mesmo atoleimado, também atarantado, parece que a idade lhe pesa estranhamente a partir da tal pracita que o transformou em motivo de gargalhadas – e até de uma bela brochada – quando andou investigando teores urbanísticos em Lisboa para elucidar suas dúvidas no arraialito em que se socou há 24 anos. Então, na azáfama de fim de ano, esse 2008 em que o Brasil naufragou mais ainda no oceano da incerteza e intensificou sua condição de terminalidade como país, eis Manoel perdido na multidão de arraialeiros bovinos, senão ovinos, senão muares, mas, seguramente, asininos. Vamos com Manoel às compras de Natal. Enter.
Preso numa fila de supermercado onde comprara mórteres (víveres são coisas do passado, quando os preços eram de manter a vida das pessoas) e bagulhos para curtição, como cerveja, algumas frutas, avelãs e coisas para a patroa fazer a festinha, eis que Manoel se sente aborrecido com alguma coisa insistente. Preso a suas divagações filosóficas mesmo que em fila de supermercado, ele é acordado de sua viagem por uma criança que grita como um capado ao sentir entrar o punhal em sua axila esquerda. Não se sabe o que levou o desgraçado putinho a tamanha birra. Pois a coisa se agrava quando outro putinho na mesma fila resolve pedir à “queopa” (riu) alguma coisa, mas a dondoca está muito ocupada em fofocar com a congênere desmiolada a seu lado, e o putinho, educado como um peido, insiste, chamando alto e insistente: “Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe! Mãe!”, e a “queopa” (riu) nem aí. Os ouvidos dos outros, segundo ela, devem ser penicos, e os dela, arrolhados para qualquer coisa que não seja fofoca ou futilidade. Enfim, Manoel consegue sair do inferno, e prossegue seu percurso para comprar presentitos para seus (uns mais; outros, menos ou nada) filhos, amigos e para sua amada. E aí começou outro calvário, digamos... torturante. Enter.
Primeiro, conseguir caminhar pelo centro do arraial, em que os brasileiros se amontoam pelas calçadas deixando, entretanto, as lojas às moscas. Se não estão em condições de consumir, de que adianta ficar como bestas olhando vitrines? Pois ficam, e engarrafam as calçadas como gado catatônico, conversando como bobos sem rumo, e ele se recorda daquele conto maravilhoso de Edgar Alan Poe, “os Crimes da Rua Morgue”, em que, diante do primeiro crime, em que o corpo foi encontrado socado numa lareira chaminé acima com a cabeça para baixo, diante da casa se amontoou uma multidão revelando “curiosidade sem objetivo”. E ele se lembra também dos Rougon Maquart, de Zola, em que a marcha da Humanidade é comparada a gado em vagões de trem indo para o matadouro ignorando o que o espera. Pois Manoel escapole dessa turba ignara e consegue parar em frente a uma lojinha de bagulhitos bestas, coisas como bijuterias, bugigangas, perfumetes, essas coisas. Pois no que pára diante da vitrine para ver se algo pode lhe ajudar a minorar a lista de compras, sai célere de lá de dentro uma criatura – mulher, corpulenta, roupas apertadas revelando pneus, jeito másculo, coisas que ele viu num penetrante relance – e já ensaia o ignóbil e asqueroso “Posso lhe ajudar em alguma coisa?”, com que os desesperados vendedores lojistas neurotizados pela obsessão de empurrar vendas – e vivem tentando pegar os compradores a laço – nos assediam. Manoel foge esbaforido, e só ouve, por sorte, as primeiras sílabas da frase cínica. E vai tentar poder escolher algo em outra merda de loja sem que lhe aporrinhem a paciência com essa mania atual de assédio aos consumidores. Enter.
Pois ele encontra outra loja parecida... e adentra. Ao fazê-lo, toca automaticamente uma buzininha. E eis que ali ele tem de ser atendido, pois deseja um produto especial, uma pilha para seu telefone sem fio. A loja, que ele conhecia como sendo especializada em telefonia, só falta agora ser ao mesmo tempo joalheria, cutelaria, armarinho, bazar, bar, papelaria, café, empório de secos e molhados, quitanda, casa de aves e muito mais ainda. Pois nesta a coisa foi especial: estava a loja às moscas; e ao fundo, numa mesita, uma criatura que falava ao telefone ao telefone prosseguiu, ignorando a presença de nosso herói. Deu um minuto, nada; um minuto e meio, nada. Manoel considerou a deselegância e desistiu. E deixou a criatura pendurada ao telefone. Puta merda esses brasileiros! Em cada dez, nove avançam como piranhas sobre suas possíveis presas; uma, simplesmente, ignora o freguês que manifesta estar ali precisando ser atendido. Segundo Manoel vai constatando, uma coisa que desapareceu de vez da cuca dos brasileiros é sentido para as coisas. Enter.
Pois Manoel conseguiu fazer as compras, e chegou o Natal, encontrando-o exausto. Em torno de sua casa, nesse período de vagares, a macacada estúpida volta e meia se reúne para fazer algazarras imbecis, jogar futebol em área não apropriada, apenas parece que essas bestas precisam ouvir o som gritado de suas próprias vozes, porque nada têm a dizer... mesmo que tendo aprendido a falar um português assemelhado com suas bundas, tenham perdido seus rabos e não possam mais voltar às árvores. Exasperado com tanta boçalidade, Manoel enverga fones de ouvido tocando bom jazz e toma uma gelada pra despistar sua contrariedade diante dessa escrotidão que foi transformarem criminosamente uma área verde em espaço de recreio para desocupados e gente sem cérebro nem compromisso com urbanidade ou... ou... cidadania, sinal de uma civilização hoje perdida no passado. Enter final.
“Pois que se forniquem todos! Que se forniquem os corruptos, os simpatizantes e adeptos da corrupção, os pulhas, e que os pobres diabos que tentam viver nesse inferno de hoje, em que nada mais faz qualquer sentido, e em que o não fazer sentido virou o sentido do vegetar desses espantalhos, de boné ou lá o que seja, que estes recebam a piedade de Deus!, porque nada mais poderá ocorrer a favor deles neste sistema de violência em que nos meteram!”. “Ei, o pá!: esqueci-me de que é Natal! Então... feliz Natal!”. E viva Santo Expedito! Oremos. “E que o diabo carregue os estúpidos!”