sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A morte de um gênio esquecido

Frederico Mendonça de Oliveira

Minha orquestra de violões e guitarras vai trabalhando comigo e
aprendendo coisas que jamais sonharia saber não fosse esse convívio
tão opositivo: eles quase todos teen, eu sessentão. Minhas aulas não
se limitam a fórmulas musicais e técnicas instrumentais e/ou teorias e
teorices: estuda-se a música em seu todo, sua evolução, sua
essência, estuda-se a vibração básica e essencial, a gênese do
som, a nota no espaço - quando passa um carro ou uma moto emitindo
uma nota, paramos para localizar a nota, o mesmo quando a cadeira
arrastada emite um som musical - e tudo que se relacione com música.
E adjacências, claro: a política mortífera imposta à música real e
a grana monumental investida nas formas sonoras miserabilizantes, desgraçantes,
regressivas e patogênicas. E foi numa dessas que lembrei Dorival Caymmi,
que morrera há dias. Enter.
Pois é. NINGUÉM sabia quem era Dorival Caymmi. Bem, dá pra entender:
são jovens perdidos num turbilhão de merda midiática e que só têm
referência de um passado musical recente pelo que pais e avós
mencionam, ou pelo que ouvem de viés, acidentalmente. Pois tratei de
cantar as coisas do velho Dorival para a turma, tudo garotada em torno
e abaixo dos 15, e foi assombroso ver como eles se abriram para a
realidade musical brasileira daquelas canções admiráveis que
trouxeram a Bahia verdadeira para o Sul ainda Maravilha. Impressionado
mesmo fiquei eu ao perceber que houve, por parte de adolescentes
púberes, grande assimilação daquela maravilha. Foi incrível cantar,
envenenando pesado a harmonia no violão e para pares de olhos vidrados
e profundamente atentos, canções como Dora, É Doce Morrer no Mar,
Marina, Suíte dos Pescadores e mais outros detalhes disso e daquilo,
inclusive lembrando Amazon River, do filho mais velho de Dorival, o
gênio Dori Caymmi, que vive coo que exilado em Los Angeles há mais de duas décadas.
E daí deu pra explicar coisas esquisitas como o completo
desconhecimento de um homem de tamanha estatura musical e da absurda
negação, por parte da mídia maligna dos globalizadores, de espaço
para trabalhos geniais e grandiosos como o de Dori Caymmi, o filho
ungido do velho baiano e um dos mais importantes compositores modernos
brasileiros, que figura no topo de nosso cancioneiro desde que este
existe como tal. Enter.
Pois é: o velho foi-se com quase 100 nas costas. Declinou
biologicamente, desfez-se deste corpo material com o qual viveu muito
bem tantos anos, e deixou este puteiro, de que falou Cazuza, com sereno
distanciamento, mas levou consigo toda a magia da Bahia que ele soube
ensinar aos brasileiros. Levou com ele as ondas verdes do mar, os
coqueiros e areias de Itapoã, a água negra do Abaeté, o vatapá, o
caruru, o munguzá, as moças do Jaguaribe que choravam de fazer dó,
porque a jangada que saiu com Chico, Ferreira e Bento voltou só... E
saiu sob uma incelença para entrar no paraíso, dando adeus aos
irmãos "'té o dia do Juízo". Enter.
O Brasil até foi cortado pela notícia, deu até durante um jogo de
vôlei da seleção do Bernardinho, com Giba e tudo, mas soou como um
pé de vento num deserto. O Brasil está desgraçadamente esquecido de
si, vitimado por uma alienação maligna, aquilo que era nosso povo é
hoje uma legião de quase duzentos milhões de zumbis... É que vigora
hoje a noção de que amar a pátria ou tê-la como valor é grave
perversão. "A burguesia fede", letrou o pobre Cazuza, mas falou
certo: a burguesia responde pelo estraçalhamento de nosso país e de
nossas vidas, porque ela é a classe dominante completamente curvada e
servil aos interesses dos globalizadores genocidas. Quanta
abjeção, quanta podridão, quanto excremento lançado sobre um povo
indefeso! Enter final.
O corpo do velho Dorival foi velado e enterrado no Rio, mas deveria ser
mandado para sua querida terra, teria de ser velado e enterrado na
Bahia, claro, como seu conterrâneo e contemporâneo Jorge Amado.
Estiveram ao lado de seu corpo uma meia dúzia de palermas da canção
brasileira, enfeiando a saída do grande ícone. Dori, que veio de Los
Angeles para enterrar o pai, soltou os cachorros nessa podridão toda
que vivemos. E não poderia ser diferente: deve ter doído em seu
coração de gênio ouvir os políticos falando de seu pai, desde a voz
roufenha e asquerosamente cínica de Lula até os César Maia da vida
bostejando asnices sobre algo que definitivamente não alcançam, mas
que até desprezaram sempre. Dori falou tudo - mas a mídia dos cães
deletou. É que a fala dele é pra gente, não pra zumbis. E viva Santo
Expedito! Oremos. ?Té a próxima, babes!