sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Notas sobre a desigualdade degradada

Frederico Mendonça de Oliveira

Abrir a Folha Ilustrada é viver contrastes atrozes. O caderno de aminidades e informação especial da publicação – esquecendo o que era publicado nele 20 e tal anos atrás – chega a assustar pela audácia e até pela violência das loucuras que ali se exibem. Classificada pelo pessoal do Hora do Povo como “cloaca da Barão de Limeira”, a Folha impressiona por ser um jornal péssimo como todos os outros e por ser agressivo agente de desinformação, tanto quanto um atraente objeto de consumo e – bem mais importante – suporte para exibição de diversos talentos de nossa intelectualidade e mesmo de gênios nossos. Isso merece relato: falemos curto e grosso. Enter.
“Curto e grosso” não como o impostor apedeuta Lula, claro. E vamos em frente. A página de capa da Ilustrada é uma vergonha: hipertrofia o anunciante e relativiza a matéria de capa. A página, medindo 30x56, usa 24x40 do espaço para o comercial ultra burguês. A matéria fica restrita a um espaço superior onde aparecem o título e uma eventual foto, mais um texto, que desce pelo lado esquerdo da página até o rodapé, usando exatos 4,5 cm de mancha: um pirulito. A idéia que aflora é a de vender ser muito mais importante que informar ou reportar. Abre-se a coisa, e lá está na página dois a Mônica Bérgamo, colunista das elites. E que elites! Desfila por lá na verdade um bando de ladrões e trancafiáveis, todos glamurizados como se fossem seres inatacáveis, exemplares. Numa dessas, há poucos meses, ela dedicou uma coluna inteira a uma festa em que Henrique Meireles, o “diretor” do Banco Central, era recebido em coquetel por um bando de colunáveis que parecia virem de outro país: gente desconhecida de quase todos e com sobrenomes cheios de consoantes. Meireles é sabidamente um rato, e Lula teve de “blindá-lo” – apoiado pelas forças globalizadoras – para que não conhecesse o futum de um cárcere, mesmo que soubéssemos que nada iria acontecer a esse agente dos chacais intervencionistas. Pois lá estava uma festança para apresentá~lo como candidatável à... presidência da República!!!! Puta que pariu!!!! Entre os comentários torpes, um lá citou a dificuldade de elegê-lo, já que “o povo odeia banqueiros”. Pudera... Mas o espírito globalizador era um fato. Qualquer pessoa temente a Deus sentiria o fedor de tetrametilenodiamina regendo aqueles momentos. Enter.
E teve as festas de casamento dos milionários brasileiros, a respeito de quem a coluna falou duas vezes em serem fortunas de ranking mundial. Aparecem, na edição de 16 de setembro, os casamentos de Renata Queiróz e José Ermírio de Moraes e de Daniella Sarahyba e Wolff Klabin. Além disso, pinta um outro casório como que de penetra, de Wanessa Camargo com Marcus Buaiz. Um espetáculo provocante de festança de beautiful people por um lado, uma afronta ao Brasil sob desigualdade degradada por outro, como apontou o crítico Roberto Schwarz. As fotos são de contos de fadas. Mas o que mais impressiona são os preços dos presentes. A Daslu faturou grosso nessa. De açucareiro a R$ 1410, bule a R$ 2620 até sopeira Rosenthal a R$ 19 mil e lustre a R$ 140 mil. Fora das fronteiras dessa esbanjação escandalosa, a pobreza cresce, e o País se esmaga sob a miséria resultante justamente... disso. Parabéns, lindas mulheres e noivos milionários. Hoje sabemos que o povo não marchará mais sobre os opressores. Mas a Lei não morre, e virá a resposta dos céus. É só aguardar. Pode não ser aqui, nesta vida, mas o equilíbrio universal é soberano e imutável. Deus é justiça pura. Enter.
Em gritante contraste com isso, as tiras de nossos gênios do cartum trazem uma visão contundente de tudo que nos cerca a aflige. Desde a loucura generalizada em tons sombrios e luz fatal do Angeli até a visão em plasticidade encantadora – inclusive no argumento – e hilariante do Gonsalez exibindo o Níquel Náusea, por si um peido na figura careta de Mickey Mouse. Ainda um Laerte e um Caco Galhardo apocalípticos e por vezes até herméticos, também um Glauco surrealista. E um Adão Iturrusgarai normalmente impagável com sua imperdível dupla Rock & Hudson em fundo normalmente rosa. Fecham essa plêiade, embaixo, o sempre inteligente Garfield e o já clássico Hagar. Não é preciso ir mais longe e fundo nisso: a genialidade de nossos cartunistas é um contraste feio se comparado com os fatos, para alguns, escusos, de La Bérgamo. E na coia da página de capa, registre-se um Nélson Freire, gênio brasileiro do piano reconhecido mundialmente, amassado no topo da página dentro daqueles parâmetros já verificados, aquele imenso L invertido, tendo como destaque arrebatando quase toda a página um comercial sobre não sei que Ursinho POOH, com área de 40x25. Isso aparece sob a chancela do Morumbi Shopping, e alude ao mundo mágico do tal porcaria de ursinho. A fisionomia de Nelson Freire, pendurada lá no alto, contrasta, pela seriedade e concentração, ao gigantismo do comercial, e até parece algo rejeitável em comparação com as imensas fisionomias estupidamente felizes do tal Pooh e dos imbecis que compõem a cena macabramente sorridente. Enter final.
É isso. Miséria produzida para parecer maravilha. Os gostosões e as gostosonas pululam em festanças enquanto o povão paga impostos massacrantes lutando por poder respirar e se compensando da tragédia torcendo pelo “curíntian”. Ou pelo “parmera”. Mesmo que gente limpa e adorável como Ferreira Gullar escreva nessa merda Ilustrada, falando para ninguém ouvi-lo, sentimos a faca imunda e cínica dos chacais conduzindo a “festa”. Festa de destaques como da Mônica, servil e sem qualquer caráter, instrumento dos seres abissais, dourando a orgia dos que lavam as mãos dos destinos dos próprios filhos. Um dia chegará: como disse Thomas Jefferson, nossos descendentes mijarão em nossos túmulos, porque fomos françuás e sacolões e ritas nestes dias de abjeção. A turma só quer é vectras, golfs, kias, toyotas e coisas merdais que tais para tentar minimizar a dor indescritível e insuportável das hemorróidas. E sorriem para as câmeras dos demônios travestidos em produtores de inserção no olimpo duvidoso das elites sem berço. Que viagem! Dedicamos estas linhas ao menino João Hélio, que Mônica Bérgamo não tem a menor capacidade ou sensibilidade pra saber quem seja. E ele é verdadeiramente o que importa a nós todos, por ser nossa mais pesada e lamentada perda!! A Folha prossegue empresa, jornal, até quadrilha, o que for; e João Hélio é a bofetada que atesta nossa desigualdade degradada. E vamos de Ivete Sangalo, de Leonardo, de Daniel, de Ronaldos, de toda essa merda incomensurável. Afinal, não temos só boca::também temos reto. E viva Santo Expedito! Oremos. ’Té mais, crianças!