sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Manoel e o colapso dos institutos

Frederico Mendonça de Oliveira

“Pois é, pois pois. Fiquei sabendo, ó Maria, que uma funcionária de uma empresa foi despedida por ter aliviado seus gases intestinais não sei se com estampido, se com fetidez sulfídrica, se com os dois. Não sei quem sentiu ou ouviu o malfadado flato, o fato é que isto valeu uma demissão para a pobre emitente do gás liberado em ambiente adverso. Mas parece-me a mim e a muitos outros seres atentos para com tais fatos aberrativos ou naturais – quem não alivia seus intestinos pressionados por gases? – que livrar-se de gases é lícito, desde que não causando lesão ou dano a pessoas ou ambientes. Que te parece, ó linda? Concordas com a demissão da pobre?”, pergunta Manoel, considerando os curvilíneos volumes de sua amada, que se ajeita na cadeira para dar prosseguimento ao diálogo. Enter.
“Tu não acreditas, ó Manoel, mas acabo de dar de cara com uma notícia enviada por uma colega de escola secundária que sempre me envia fatos bizarros para curtição. Trata-se do teor de um despacho judicial tratando justamente desse assunto. Veja aqui no vídeo”. E Maria abre sua caixa postal e exibe o material para seu abestalhado Manoel. A combinação de termos e de ambientes, isto é, o juridiquês empolado usando até latim para se referir a emissões gasosas de intestinos e as imagens que passam por nossas mentes lembrando tribunais e, claro, as partes emitentes dos gases e a sonoridade característica e sempre hilariante deles acaba gerando uma propensão ao divertimento, e Manoel já olha para as palavras do texto com expressão a caminho do riso. E o texto acaba realmente risível, inusitada que é a combinação de tais conteúdos. Segue o texto. Enter.
“RECORRENTE: Coorpu's Com Serv de Produtos Para Estet/ RECORRIDO: Marcia da Silva Conceição/ EMENTA - PENA DISCIPLINAR. FLATULÊNCIA NO LOCAL DE TRABALHO.
Por princípio, a Justiça não deve ocupar-se de miuçalhas (de minimis non curat pretor). Na vida contratual, todavia, pequenas faltas podem acumular-se como precedentes curriculares negativos, pavimentando o caminho para a justa causa, como ocorreu in casu. Daí porque a atenção dispensada à inusitada advertência que precedeu a dispensa da reclamante. Impossível validar a aplicação de punição por flatulência no local de trabalho, vez que se trata de reação orgânica natural à ingestão de alimentos e ar, os quais, combinados com outros elementos presentes no corpo humano, resultam em gases que se acumulam no tubo digestivo, que o organismo necessita expelir, via oral ou anal.
Abusiva a presunção patronal de que tal ocorrência configura conduta social a ser reprimida, por atentatória à disciplina contratual e aos bons costumes. Agride a razoabilidade a pretensão de submeter o organismo humano ao jus variandi, punindo indiscretas manifestações da flora intestinal sobre as quais empregado e empregador não têm pleno domínio. Estrepitosos ou sutis, os flatos nem sempre são indulgentes com as nossas pobres convenções sociais.” Enter.
“Vê, Manoel, como tudo é tão relativo. Todos sabemos das pressões sociais agindo em nossa fisiologia, todos vivemos às voltas com evitar emitir gases em momentos ou locais considerados impróprios, mas punir quem deixa escapar um sonoro e/ou malcheiroso pum me parece algo além dos limites. Se o autor do disparo o faz de forma acintosa contra um superior, aquilo de assestar a via de liberação em direção ao endereço e deliberadamente efetuar o disparo, acredita-se até na procedência de uma justa causa. Mas se foi involuntário, se escapou, malgrado os efeitos da liberação, seja a contrariedade gerada com lidar com gases oriundos de entranhas outras e portanto portadores de conteúdos mefíticos indesejáveis para terceiros, seja pela quebra de uma convenção de compostura no trabalho, é bem vinda a indulgência para com o pobre emissor”, considera Maria diante de um olhar derretido de Manoel. O casal tem por princípio não incluir emissões quando juntos ou apenas próximos. Mas o fato de uma empresa despedir uma pobre peidante cheira a pedantismo. “Tu viste, ó Manoel, aquele vídeo no Youtube em que um funcionário recebe, em sua apertada repartição, seus colegas de trabalho que levam para ele o bolo de aniversário, e eis que o aniversariante, sem saber do séquito que invade seu espaço – ele estava de costas – ali adentrava com o bolo, emite uma bomba sonora em direção aos pobres?”, pergunta Maria. Você pode, querido leitor, assistir às cenas dessa situação que Maria lembrou, basta clicar no link abaixo. E Manoel, vendo as cenas, comenta: “Mas que podemos fazer diante de uma rata dessas senão sair correndo do local para evitar inspirar conteúdos de entranhas outras?? Aliás, foi o que me pareceu que os envolvidos fizeram...”, comenta nosso herói diante do fato inesperado vivido por todos. (http://www.youtube.com/watch?v=NkblnnAF1sE) Enter.
E Maria aponta no texto enviado por sua amiga algo que não vira antes e que corrobora suas palavras de forma inequívoca: “A imposição dolosa, aos circunstantes, dos ardores da flora intestinal, pode configurar, no limite, incontinência de conduta, passível de punição pelo empregador. Já a eliminação involuntária, conquanto possa gerar constrangimentos e, até mesmo, piadas e brincadeiras, não há de ter reflexo para a vida contratual.” E Manoel pensa nos seus longínquos tempos de escola fundamental, em que as brincadeiras com pum eram diárias, sendo verdadeiro sucesso em salas de aula – especialmente quando o risco era grande, no caso de o professor ter maus instintos – e de como isso enriqueceu sua vida com um acervo de lembranças em que a inocência ia se perdendo através de práticas de pequenos desvios, e ainda de como isso trouxe de forma indolor a compreensão da nossa falibilidade humana. Enter final.
E Manoel conta para Maria sua experiência com o Realismo português, quando, lendo O Crime do Padre Amaro, deparou com aquela abertura falando de o pároco José Miguéis, de Leiria, não ter compostura de sacerdote, chegando a arrotar no confessionário e a desencorajar com maus modos as fiéis carolas que lhe vinham falar de jejuns: “Ora, coma-lhe e beba-lhe, criatura!”. Maria se deliciava ouvindo a fala de Manoel, cheia de deslumbramento, e acabou por falar sobre a falência irremediável de todos os institutos: “Tu vês, ó Manoel, que a estrutura da lei, a considerar o crescimento desordenado das populações Brasil a dentro e mundo afora, chegou a um impasse de pane total. Todos os valores se relativizaram a tal ponto que seria necessário reformular tudo, desde a Constituição até os conteúdos de cargos de comando, e com isso estaríamos diante de tamanha e tão árdua tarefa que a vida passaria a andar para trás. Quanto maior o número de leis, pior a república, diz o adágio latino – mala raepublica plurimae leges –, e vemos o colapso geral quando toda uma estrutura da Justiça é acionada por conta de um simples pum!”. E Manoel: “É, minha linda: a civilização acabou!”, e os dois deixam a adorável copa-cozinha e fica lá o gato dormindo, dando um toque de beleza à cena. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar: estamos sob censura desde 11/04/08, aliás, mantida por Gilmar Mendes, e a restrição vai totalizando 939 dias. Abraço pra turma do Estadão, há 490 dias também sob mordaça...