Frederico Mendonça de Oliveira
O candidato Hélio Costa, aquele que já foi repórter global, ostenta uma juba quase branca e que o faz parecer uma velha senhora intolerante, carrancuda, foi ouvido en passant por Maria quando eructava uma pergunta cínica em programa eleitoral. Não era aquele horror gratuito de uma hora, que obriga pessoas decentes a desligar o rádio: era uma vinheta de propaganda metida no meio da programação da emissora que o casal ouve constantemente, embora a cada dia menos e menos. Pois Maria se retou diante da fala do senhor (a?) candidato (que parece candidata véia e mal encarada), que era mais ou menos isso: “Você gostaria que suas contas de água, luz e gás fossem mais baratas?”, e argumentou expondo algo do tipo “vote em mim”. Maria perdeu as estribeiras com o rádio, parecia brigar feio com o aparelho, o que teatral ou cinematograficamente daria uma cena e tanto – dependendo do diretor, óbvio. E desembestou numa fala indignada, perante o que Manoel, que sempre almoça mais demoradamente que ela, não sabia se mastigava ou se ria, tanto divertia a nosso herói aquela inusual “performance”. Ela imprecava com verve: “Mas o que quer esse sujeito?? Ele pergunta a macaco se quer banana??? Que diabo de cinismo e cara-de-pau é isso?? Então ele vai minorar a conta de água, luz e gás, terá poder para isso, se eleito?? Ora, com mil tanques de roupa, vá blefar assim em mesa de pôquer de púberes aos buços!! “, e Manoel quase gargalhava ao ver sua deusa cuspindo marimbondos por todos os orifícios visíveis e teve de se virar para contemplar o semblante dela, a deusa irada diante da ignomínia instituída. Enter.
E Maria, às voltas com vassoura e outros petrechos e pequenas arrumadas aqui e ali, volta à carga, veemente, ardente em sua ira santa: “Queria ver se esse ardilão aparecesse por aqui à caça de votos, que fosse lá na Universidade, e vertesse essa gosma peganhenta de diminuir custo de água, luz e gás! Ele me teria pela frente perguntando sem nenhum salamaleque se ele, regiamente pago por nós, por nosso suor, diminuiria seu salário ao patamar dos membros do parlamento inglês – que não dispõem de verba de ajuda nenhuma, apenas de um salário simbólico –, para ver o que esse alambicado jubado responderia. Mais: gostaria de contemplar o abismo entre um boneco do poder em busca de ascensão e os pisoteados seres comuns que no íntimo gostariam mesmo é de poder linchar o cara e, na verdade, todos os assemelhados a ele! Isso não ocorre porque no fundo somos todos cristãos, embora os que engendrem tudo isso nos chamem de cordeiros...”. Enter.
A programação da emissora que pôs no ar a fala melíflua e farsesca, emissora dita educativa, embora decaindo em todos os níveis – apresentando essa fala e outras desviadas feias –, vai sendo corrompida dia após dia pela inclusão de submúsica, sucumbindo ao soul e porcarias, tudo porque a ignorância musical impera geral. Trata-se de problema hoje de alcance nacional, e os bons profissionais da emissora vão sendo preteridos por uma intervenção. O câncer, se não vem de fora através de imposições do Estado, que regula esse tipo de mídia, “educativa” mas na verdade instrumento do poder, acaba vindo de dentro. Digamos que por se incluir gente não despreparada – antes fosse! –, mas mal intencionada, que usa a emissora para seus interesses pessoais combinados a uma intervenção visando baixar o nível cultural geral. E agora nossos heróis relutam em sintonizar – antes era o tempo todo, só escapando de canseiras eruditas mal programadas –, de forma crescente vão fugindo para o silêncio, para não poluir a casa com massamordas sonoras burras, tudo agravado pela chegada torpe das falas dos sudras que sonham ascender ou continuar poderosos, ansiosos por ver chegar a seus lábios infames os úberes tumescentes do poder. Enter.
“E essas bestas do arraial, essas malas sem alça que integram esse cancro que dizem ser comunidade mas que não passa de um ajuntamento de deformidades assumidas, ainda têm, Manoel, a audácia solerte de dizer que agora falo como você... e há que considerar a falta de educação dos bugres dessas montanhas, que simplesmente ignoram e mesmo no fundo reprimem a fala da mulher quando estão em reunião em que ela é minoria e “ousa” se manifestar sobre os assuntos que rolam. É “cultura” nessas montanhas calar a mulher... até porque a mulher pensante aqui é coisa muitíssimo rara, e as que ousam abrir seu discurso são normalmente araras boçais ou as que calçam números maiores... Enfim, os brasileiros e seus políticos se merecem, se considerarmos a estética da deformidade reinante na Pindorama...”, conclui Maria com olhar entre incisivo e afetuoso fixando a parede quase no teto, onde acaba de pousar e se acalmar uma imensa e linda mariposa que veio de fora. E, dando uma estudada no calendário afixado na parede da copa-cozinha para saber se já entrara a lua crescente, Maria dá de cara com o destaque no alto da folha de setembro: “7 – Independência do Brasil”. E logo se encrespa com a desfaçatez que aflora de tudo:
“’Independência do Brasil??’ O 7 de Setembro marca apenas o desligamento de Portugal para passarmos a depender da Inglaterra, depois dos EUA, hoje do Império, nunca houve Brasil independente nenhum! Ou seria independente um lugar como esse, onde uma quadrilha instalada no poder governa outra quadrilha que sonha ascender a postos de poder e desfrute, onde o crime em todas as dimensões é instituição dominante? E onde a estupidez é a moeda corrente entre objetos vestidos manipulados para alimentar a degenerescência instituída, onde os estúpidos e safados mandam e os conscientes e inteligentes vivem em exílio para escapar da barbárie miserável que grassa como epidemia devastadora???”, e Manoel se deslumbra com a radicalização apresentada por sua sempre elegantemente contida Maria, que agora apresenta uma outra beleza, nova, a beleza aflorada, não a beleza em botão que sempre fora... Enter final.
“Ó Maria, tu saíste da lata!!!”, exulta Manoel com rosto radiante, maçãs do rosto brilhantes, lembrando o comercial do azeite Maria de seus tempos de menino, que dizia, em lusitanês: “Ó M’ria! Sai da lata!”, e que fazia sucesso a ponto de o produto ser ícone de mercado. Hoje o azeite Maria é misturado a óleo de soja, perdeu aquela condição estelar dos anos 50. Manoel se esbugalha de ver uma nova aura em sua deusa amada, vê-la mais lépida, mais brilhante em tudo, mais concentrada, e a felicidade se intensifica no lar onde a verdade bate de frente com a corrupção em derredor. “Por São Sebastião, o que será desses pobres infantes que “já nascem” ignorantes de pai e mãe e ainda são deformados pelos pais, que os levam a praticar perseguição a gente decente dissidente da corrupção local, guris que já na flor da infância estão envolvidos na podridão, apoiando ilícitos públicos??”, pergunta Maria a seu Manoel embevecido. Corta para uma tentativa de ouvir boa música na rádio. Em vão. E viva Santo Expedito! Oremos. Té a próxima, queridos!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, e que a restrição já vai totalizando 868 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 413 dias...