Frederico Mendonça de Oliveira
"Ora ora!, pois pois!, que os diabos me levem se estou a perder a noção de mim mesmo, ó pá!", vive resmungando Manoel, nosso herói, pelos cantos ou andando pelas ruas abarrotadas de macacos sem rabo andando sem rumo – já que o rumo das árvores para onde essa choldra tende a voltar está perdido, seria perigoso reabitá-las sem apêndice caudal. Manoel contempla os brasileiros vendo-os degenerar não abestalhados ou pasmos, mas tomados de um tipo inconcebível de delícia mórbida... mas desde a criação daquela maldita pracita que Manoel vai considerando que os brasileiros andam a perder sua própria idéia de vida, de tudo. Basta ver os parlamentares e governantes que elegem, vide o maluquete que ocupa a presidência... Enter.
"Gostas de merda, ó pá? Pois estou a chafurdar nela, e não vejo como voltar a Portugal por agora, mas a burrice neste país faz dele um hospício dos mais loucos que possa conceber a imaginação mais delirante!", comenta Manoel como se falasse a amigos, mas ruminando consigo mesmo, vendo as aberrações mais absurdas ocorrendo à solta. Conversando com uma finíssima pessoa sobre a pracita, soube que uma outra pessoa influente nos meios universitários da cidade criticou um morador que vem sendo massacrado por resistir, em nome da lei (!!!), à aberração urbanística. Esta criatura influente dizia a seus alunos que "o morador é meio maluco (por exigir cumprir-se a lei??) e que a pracita é uma belezita, que ficou tão agradável a vista dela tão bem tratadinha"... "Sim, sim", replicou um aluno depois da aula, "mas é ilegal e tremendamente prejudicial ao bairro, à cidade e às instituições, especialmente porque rasga a lei federal que protege o espaço e o faz intocável e porque mija na Lei Orgânica do Município". A tal figura influente desconversou, como convém aos cínicos... Enter.
"Não entendo como os brasileiros podem gostar de se comportar como mulas!", desabafa Manoel em relação a essa figura influente que ou está a desandar a cabeça de seus alunos para agradar a corruptos poderosos ou trata-se ela mesma de um exemplar asinino vestido de belos panos. Ele, que estudou em Coimbra como o poeta baiano Gregório de Matos, não pode esquecer o que este disse sobre o Brasil degenerado já em tempos idos do século XVII: "Adeus, praia; adeus, cidade,/ e agora me deverás,/
velhaca, dar eu a Deus/ a quem devo ao demo dar", recita meio que rugindo nosso herói de fígado amargurado, e a tal ponto que nem uma cerveja brasileira, que dizem ser "paixão nacional" pode aplacar. Condoído por ver o retrocesso social galopante e maligno em que está inserido até dele poder se desvencilhar, Manoel começa a roer a alma. E prossegue lembrando os versos de Gregório de Matos, um dos poucos homens nesta terra que viu e denunciou a merda que o cercava. Lembrou-se do poeta definindo sua cidade, Salvador: o mote é "De dois ff se compõe/ esta cidade a meu ver/ um, furtar; outro, foder"; a glosa é: "Provo a conjetura já/ prontamente como um brinco:/ Bahia tem letras cinco/ que são BAHIA,/ logo ninguém me dirá/ que dois ff chega a ter/ pois nenhum contém sequer,/ salvo se em boa verdade/ são os ff da cidade/ um furtar, outro, foder". E Manoel suspira ao considerar que um autor como este, cuja obra encarta também uma linda parte religiosa em que seus sonetos ao Cristo até hoje comovem com raro impacto, sequer é lembrado no Brasil senão em salas de aula de Literatura, mas que os que o tomam o fazem por obrigação ou interesse material, e logo está de novo esquecido. Que dizer da turba ignara, em que se inserem até mesmo professores e dentistas!... A estes, Manoel, amargando seu exílio, seja local seja em ultramar, declama com fúria o mesmo Gregório de Matos que ele tanto admira: "Adeus, prolixas escolas/ com lentes, bedéis, secretários/ que tudo somado é NADA!". Enter.
E assim se vai preparando Manoel para cruzar de novo – “e sem volta!!”, exclama ele com seus botões – o Atlântico, oceano que os arraialeiros aqui, como ele passou a vê-los, chamam de “Atrântico’, e que mal sabem o que significa, senão que é longe e grande. Como não sabem, os arraialeiros, o porquê de um feriado que parou o país – embora já esteja parado desde 1964 –, mas que os fez trabalhar mesmo assim, e putos da vida, mas obedecendo, para não ficar sem o feijão na barriga depois peidante. O feriado era 15 de Novembro, proclamação da República, que os arraialeiros ignoram, mas que, obrigados a palrar esse nome, dizem: “Pocramação da Repúbrica”. Enter final.
E o coração de Manoel se aperta quando lembra o também poeta Carlos Drummond de Andrade, que verseja sobre o si mesmo desolado pela perda das perspectivas neste Brasil desonrado e desgraçado, da mesma forma que Manoel agora sofre: “Quer voltar pra Minas/ Minas não há mais”. Sofre Manoel pelo sofrimento de Carlos Drummond, que se pergunta “E agora, José?” da mesma forma que Manoel se indaga de si. O oceano azul profundo o salvará? E viva Santo Expedito! Oremos. ’Té pra semana, babes!