Frederico Mendonça de Oliveira
Embasbacado com ver seu amigo músico penar sob perseguição odiosa de fanáticos ligados a esquema radical mafioso com teores olfativos a pão de queijo (é como se diz em Portugal: “tem um cheiro a peido”), Manoel conversa com ele sobre a perspectiva de ambos deixarem o arraial onde se abrigam da guerra civil tupiniquim há mais de duas décadas. Ambos deixaram o Rio, onde uma novidade ganhava os noticiários: balas perdidas. O amigo de Manoel, músico desencantado e à época iniciante numa carreira de artes plásticas – setor artístico também logo bombardeado pela involução social brasileira naqueles últimos tempos do ciclo militar –, ainda vinha de mala e cuia para o Arraial das Bagas com alguma esperança numa atividade que ele ativaria nestas montanhas inóspitas. Tentava também salvar um casamento, dedicando-se com ardor aos filhos, um já com um ano, outro a caminho, no ventre materno. Mas tudo se revelou acerbo. E toda a tarefa do amigo no arraial foi envenenada com dose cavalar, instilados o veneno e a peçonha de todas as maneiras, entre botes de surucucu e doses furtivas de anidrido arsenioso. Figurado, tudo isso, claro, mas os efeitos são bastante próximos se fosse real a ação de veneno e peçonha de verdade. Enter.
Pois o amigo de nosso herói vive mesmo uma realidade braba: reconhecido até mundialmente, enfrenta, por outro lado, uma condição de artista sempre oculto, procurado febrilmente por especialistas mas penando uma obscuridade perversa – por assim dizer: ele nem está aí para ser ou não reconhecido por leigos e patetas – à qual volta as costas com sereno desinteresse. Entre seus pares músicos, só encontrou, com raras exceções, imbecis ignaros e inescrupulosos, gente com mente oscilando entre valores de frango de granja a jogadores de futebol. E, na maioria, completamente estupidificados pela manipulação dos títeres do meio musical. Alçado, depois de lançar o mais festejado e premiado disco solo da história da música instrumental brasileira, disco aliás recebido com louvor como “padrão de composição contemporânea brasileira” por gente como Gil Evans e registrado nos mais importantes centros de estudo no planeta, ei-lo massacrado pela horda de sequazes do maior concorrente, um cafre metido a galã mas de modos assemelhados aos dos mais rebaixados cafajestes. Hoje, senhor de um conhecimento refinado e de grande alcance, iniciado nos teores do Conhecimento, ei-lo estudando sua guitarra com ardor, preparando um disco de despedida para deixar registrado seu trabalho para estudantes e estudiosos, mas apenas isso. Quanto a todo o resto, tirando sua amizade e troca fraterna com o Manoel &e Maria, encontra em sua amada Alfa e nos gatos do casal uma forma de resistir à estupidez vuvuzelânica desses dias incertos como uma jabolani. Enter.
E lá se foi tudo por água abaixo, apenas resistindo, de seus filhos, o carinho de suas filhas, uma de cada casamento (quarto e quinto), estando o mais velho afastado pra São Paulo e tendo os outros dois aderido à máfia dos arraialeiros dedicados a uma religião perigosa, a do fascínio artístico do guru do poviléu dessas montanhas associado à política permissiva em relação a comportamento em todos os sentidos. “Esses montanheses obtusos pensam que degenerescência abissal de costumes é evolução, ó Maria! Eles verão a Sodoma que os espera e que irá tragá-los sob a erupção de uma fúria dos elementos!”, comenta Manoel enojado com a traição asquerosa movida por uma camarilha em que se vê figurando até um atual Brutus entre os que apunhalam seu pai. “Que esperar disso tudo, ó minha linda? Só resta enfrentar todo e qualquer sofrimento com honestidade, porque são dívidas que se vão queimando no processo cármico! Mas estamos com nosso amigo, como Laocoonte, que não se entregou às serpentes enviadas por Minerva na praia diante da bem fortificada Ílion, quando da oferta do cavalo. ‘Timeos danaos et dona ferentes!’, dardejou Laocoonte diante do imenso cavalo de pau, isto é: ‘Temo até os presentes, quando vêem dos gregos!’. Pois é isso: que ele possa dever, é claro que deve, senão a cobrança não se faria tão certeira; mas se somos amigos dele, é porque já o fomos outrora, e lutaremos com ele contra esse carma, é assim que se evolui. Se nos entregamos é porque concordamos com nossos erros passados. E não concordamos, ó minha linda!!”. Maria considera com seriedade essas palavras, para muitos indecifráveis, mas para ela claras como a água do riacho, tão limpinha, que dá pro fundo ver... e vai caindo a tarde no arraial, e mais uma noite ameaça estas montanhas tão pecaminosas e tão distantes da palavra do Cristo! Enter.
“Ó amigo, amanhã temos mais uma patacoada verde e amarela! A seleção da Holanda vai espetando o caricato e precavido, mas perigoso, Dunga. Alguém até disse que a seleção brasileira é perigosa como cobra venenosa. Vamos ver se a seleção laranja mata a cobra com um pau firme. É um enigma, claro, mas pode ser um jogo de algum sabor em meio a tanta chutação de bola sem sentido desde que começou essa gororoba futebolística!”, comenta Manoel com seu amigo sempre concentrado, sempre de “olho no seu inimigo”, que ele sabe espreitar de cada frincha que se apresente revelando sua presença. O amigo não se envolve com futebol, que ele acha algo chato de há muito, mas solta uma consideração: “Bem, vamos ver se aparece alguma coisa bonita em campo, já que fora dele só vemos essa minoria barulhenta de bobos alegres se alcoolizando no desejo ardente de uma vitória que em nada lhes pertence... e, Manoel, veja bem: um amigo meu, de sacanagem, no dia 7/ 09/ 2009, desfraldou uma bandeira brasileira à frente de sua loja de serviços fotográficos. Na verdade, o cara é alemão, e pra lá de consciente, alemão nacionalista, sabe como é isso, né? Pois acredite se quiser: entrava gente na loja para perguntar se ia haver jogo do Brasil...”, e os dois amigos explodiram em gargalhadas, aquela explosão deliciosa dos que sabem do que riem, dos que conhecem os valores desse mundo perdido e de repente encontram uma deixa pra soltar seu humor esmagado no peito por esses dias atrozes de corrupção e perversidade soltas... Enter final.
“Bem, vejamos o que sai das quatro linhas amanhã. Abstraiamos a fauna vuvuzelesca e fútil e tentemos enxergar o conteúdo verdadeiro de tudo. O melhor é assistir sem som, para não corromper a competição pela parcialidade de nossos locutores e comentaristas”, propõe o amigo de Manoel. E não deixa de comentar com seu amigo luso a estupidez que avança contra nosso idioma: "A Veja – ou a Isto É, sei lá – estampou matéria de capa falando sobre a rejeição agora internacionalizada em relação ao bobalhaço Galvão. E a manchete é: ‘Cala boca Galvão!’, sem aspas, sem o artigo e sem a vírgula. O mundo vai se acabando, querido Manoel! Nosso idioma anda na boca de cachorros!”, e Manoel e Maria se entreolham pensativos, sacando o horror. “Nosso idioma vai pro saco, ó Maria! Não há mais o que segure esse horror!”. E viva Santo Expedito! Oremos. Té a próxima, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 795 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 333 dias...