quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

O carnaval das bestas sem rumo

Frederico Mendonça de Oliveira

Manoel já começa a pensar em ir desmontando sua casa para a mudança definitiva em sua vida. Contempla a casa com alguma comiseração, observa os gatos inocentes, na quietude majestática que ele tanto admira nesses lindos animais a que Leonardo da Vinci se referiu dizendo que "O menor dos felinos é uma obra-prima". "Concordo com o mestre, quem haveria de discordar?, a menos que seja uma cavalgadura ou um insensível que só vê importância no animal subserviente, obediente, como o cão, essa mistificação besta, esse animal cheio de senões, bicho deselegante, que mata por ódio, persegue por mau instinto, esse bicho que até consegue ser útil, mas que depende do dono até pra limpar seu cocô e precisa que lhe dêem banho!". Absorto em seu gato por sua vez absorto em cuidar, em paz total, do próprio pelo, Manoel até se esquece da perspectiva sombria da mudança que começa a aparecer ameaçadora no horizonte visual. Bem, para onde for há de ter gatos, bichanos, isso é de lei. E enquanto a vizinhança ralé ocupa seu dela novo espaço urbanisticamente espúrio e excitando as crianças que descarregam seu já tão precoce envolvimento em crime fazendo algazarra, Manoel cofia bigodes imaginários cantando Lisboa Antiga, e considera a possibilidade de cruzar o Atlântico definitivamente, deixando esse país em decomposição ocupando apenas sua memória. "Foi um rio que passou em minha vida"... Ah!, aqueles tempos de ditadura, todos resistindo àquela pinóia, mas eram tempos de esperança. A globalização já avançava, mas ninguém, senão profetas e estudiosos muito provectos, imaginava a degringolação que viria, a ponto de o sistema transformar os cidadãos em bestas ou objetos vestidos. Macacos sem rabo, aliás, que só não voltam às árvores porque desprovidos do apêndice caudal, que lhes daria o equilíbrio de antanho. Enter.
À noite, ao chegar janeiro, durante anos rolou o som do ensaio das escolas de samba do arraial, aquela batucada que era ouvida vindo lá das periferias, onde os negros, ops!, afrodescendentes se amontoam como manda o espírito escravista ainda enraizado nas mentes do Sul de Minas. Agora a prefeitura do arraial declarou que não dá mais dinheiro pra porra de carnaval nenhum, então o couro não come como nos anos antecedentes. A macacada (como se dizia no Rio desde sempre, por influência de portugueses, e sem medo dessa frescura cínica de "racismo") anda sorumbática, perdeu sua festa maior, não pode mais se vestir de "rei, pirata ou jardineira/ pra tudo se acabar na quarta-feira". Mais uma dos gringos globalizadores. Mas que fazer, se a macacada obedece numa de cordeiros a tudo que os donos do mundo determinam que seja feito? Que fazer se o "créu" vira coqueluche nacional, se a tão medíocre Ivete Sangalo, que, se muito, fala entoado (cantar é outra coisa!) aquelas canções de merda, é musa neste imenso arraial tupiniquim? Pois é: os brasileiros entregam o ouro sem qualquer resistência... e o pior é que isso é feito com plena convicção. Pois não foi isso que estragou a vida no bairro antes tão aprazível no arraialito? A pracita, solicitada irregularmente por uma autoridade que não tem autoridade nenhuma pra solicitar qualquer coisa na área administrativa, se tornou fato no que o seu idealizador levantou o dedo dizendo que ia fazer a obra, e teve logo a seu favor, em curvatura obscena - "quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos", este é um ditado que encaixa como luva nesse espetáculo de subserviência pornográfica ao maioral -, o apoio de estúpidos vestidos que infestam o bairro, chusma de ignorantes arrogantes, batatas de sofá que vivem como vegetais, alguns até envolvidos em crimes e maracutaias. E com essa de apoiar ilícito viram cúmplices de crime de prevaricação e de responsabilidade. E gostam, e se empenham em perseguir covarde e estupidamente quem tomar qualquer posição diversa da subserviência cretina que exibem com orgulho de malucos abestalhados ou bestas amalucadas. Enter.
Pois chega o carnaval mesmo, aquele do passado, aquele do calendário cristão, aquele de saudosa memória, aquele que suscitou tanta cultura e felicidade até que um certo João Roberto Kelly, com cara de bácoro álacre, começou a fazer marchinhas tipo empulhação, levando para o rés do chão uma tradição de pérolas de nosso cancioneiro. Nosso?? Puxa, onde Manoel ainda se mete nisso? "Nosso", para Manoel, é o fado, é o vira, são as valsas que ele criou com tanto encantamento!... Toda a poesia do passado desabou em oceano de merda, exemplo disso é o abjetíssimo Sílvio Santos compondo marchinhas torpes como aquela miserável "A pipa do vovô não sobe mais", pura molecagem reles, a cara do tipo. Enter final.
E o surrealismo toma conta da vida geral nesses dias que antecedem o historicamente finado tríduo momesco, os apetrechos carnavalescos pendurados sem qualquer sentido nas lojas de R$ 1,99, o paraíso dos proletas. Máscaras, confete, serpentina, fantasia, tudo parece irreal, deslocado, e a macacada perambulando a esmo por entre lojas tocando lixo sonoro em amplificadores nas portas. “Adeus, Brasil!”, pensa Manoel olhando um cenário humano desolado e semimorto. E viva Santo Expedito! Oremos. Caminhemos! ’Té mais, babes!