Frederico Mendonça de Oliveira
“Ó Maria, de que servem organizações lusófonas ocupadas com preservar o Português, se o que acontece direto e reto é a depredação diária e diuturna do idioma através da burrificação coletiva e da estupidez promovida pelo Sistema em todos os níveis?”, pergunta nosso herói a sua amada, que o ouve concentrada avaliando os teores da pergunta. Manoel voltou a mil, depois de um mergulho em estudos transcendentais, de que tirou um belíssimo lastro para seu aperfeiçoamento e de sua linda Maria. Houve um grande salto de qualidade com as grandes descobertas e aprofundamentos, mas cresceu feiamente o abismo entre o casal e o mundo esmerdeado e em galopante desmantelamento que o cerca. E, claro, é um mundo em que o casal não se insere de forma nenhuma, casal cada vez mais fugindo da estupidez generalizada. Bem, vamos ao front. Enter.
“O idioma se depreda na medida exatamente proporcional ao desmantelamento do social. Estão sendo amputados os pronomes oblíquos, por exemplo, não só nestas montanhas apinhadas de macacos sem rabo, de bugres movidos a desejos primários, e essa macacada ocorre em todos os níveis sociais. A burguesia local fala um pouco mais corretamente – ou menos incorretamente – mas não está preocupada com o idioma em si, patrimônio da comunidade que o utiliza, por ser o instrumento que nos expressa. Os objetos vestidos do Sistema falam abertamente ‘E ela não convidou eu pra ir na festa’. Seria correto dizer ‘E ela não me convidou para ir à festa’. A lógica dos ignorantes vai suprimindo tudo que os obriga a pensar ou a lembrar. Eles vão se fazendo entender através de sua rusticidade que sonha não a simplificação, mas a primarização total, pois querem mais tempo de vazio na vida, o que lhes permitirá encher as cucas de mais desejos de matéria e de desejos só desejos mesmo. E assim vão se bestializando e rumando para a comunicação dos animais, que tem códigos extremamente primários e sem mais que, digamos, cinco emissões de significado. Aliás, por aqui se corrompe o idioma pela preposição. Quando comecei a conviver com esses tipos mal falantes, logo percebi o mau uso das preposições. Ir na festa ou no cinema significa ir lá com outra intenção que não participar do que as duas coisas oferecem. Ir na festa seria para fazer outra coisa, como ir verificar, excluído da função, se alguém estava lá e fazendo o quê. Ação de espião, por exemplo; e ir no cinema seria parecido, como ir levar moedas de troco para alguém que lá estivesse, na bilheteria, digamos. Nada de assistir ao filme. E trocar o pronome oblíquo pelo reto é baixar o nível para contornar escolha de correção gramatical. ‘Pra que isso?’, pensam esses pongídeos, que, por outro lado, costumam corromper o oposto: ‘Tinha muita coisa pra mim fazer’. Um pacóvio da imprensa local, por exemplo, que lembra o perfil dos primatas, chafurdava nos erros da publicação, uma farra. Depois, por injunções várias, veio uma purificada na titica, mas o sujeito e seus pares prosseguem toupeiraças nas vírgulas, por exemplo, e as idéias editoriais, especialmente os cabeçalhos de primeira página, são verdadeiros tiros de bestialidade”, considera Manoel, sob o olhar absorvente de sua linda. Enter.
“É uma ruína crescente, e não nos consola Gilberto Freyre dizer que o Português é fadado à extinção por ser complexo demais. Alfabetizado em Inglês, ele fala de cima a respeito do que espera os dois idiomas. Mas não levou em conta, nisso, que a deseducação imposta à Pindorama promove e acelera a depredação. Como conservar um idioma se se destrói quem o utiliza e se é desmontada a estrutura física de sua sustentação, que são a Educação e a Cultura? Não é isso, ó linda?”
E Maria assume: “E o cara que andou presidente por oito anos nesse lugar comentou, a respeito do problema do WikiLeaks, mais precisamente do affair Assange, que o culpado foi o que criou a ‘mensage’, não o que divulgou a ‘mensage’, e isso ilustra o que tu falas, ó meu Manoel”. E fala penalizada com a grosseria que é obrigada a reportar por imposição de ofício, pois abraçou a problemática da Educação como sua atividade. “E tu não vistes uma das chamadas de capa de O Globo de hoje, falando de cruzeiros marítimos – essa nova festa de imbecis turistas navegantes – e dando um soco no olho do leitor?”, e Manoel vai ao monitor olhar, e lá está: “Cruzeiros investem em mordomia 24 horas à bordo”. “Bordo é substantivo masculino, cacilda, e o jornalista não deve saber nem o que é substantivo, e periga nem saber o que é masculino!”, fala Manoel com cara de sacana para sua Maria que lhe sorri de volta com os lindos olhos. “Se o cara vacila já de cara nessa, saberá o que é crase? A menos que alguém lhe explicasse muito bem que ele pode ser um ser craseado, ou seja, que vive duas realidades de condição sexual, ele jamais aprenderá como usar ou não a mistura do a preposição com o a artigo...”, prosseguiu Manoel com mordacidade educada, sob o olhar doce e picante de sua linda. E a conversa vira para questões de preservação e depredação cultural, e a Tailândia entrou em cena como novidade que anda assustando os estrangeiros. Enter.
“A nova mania na Tailândia, naqueles confins asiáticos, é o caraoquê, veja só, ó linda! A palavra vem do japonês, karaoke, formado de kara, 'vazio', e oke, redução de okesutora, 'orquestra'. Ou seja, fundo musical sem canto, ou back ground, ou bg. Isso virou febre lá, e houve uma feia reação: atiradores começaram a ‘coibir’ a prática, em defesa de valores tradicionais da cultura local, que rejeita energicamente essa merdificação do canto, a entrega do microfone para o leigo, para o desejoso de fazer o que sonha e que não tem preparo para fazê-lo. E uma das canções preferidas nessa é ‘My Way’, aquela bosta gravada pelo Sinatra já senil. Então em uma semana foram eliminados literalmente, a tiros, uns 30 caraoqueiros, parece que justo quando cantavam a infamérrima My Way... Que achas disso, ó linda?”, pergunta Manoel. Enter final.
“Digo-lhe, meu Manoel: soa-me que a civilização morre. O progresso tecnológico joga os seres para um passado, bestializa tudo e todos, e a reação a isso tem de ser radical, ou morrerá no nascedouro esmagada pela força do capital cancerígeno. Temos muito a falar ainda sobre isso.”, e Maria leva seu Manoel para lá... E viva Santo Expedito! Oremos. Té a próxima, babes!
Ah! Vale lembrar: estamos sob censura desde 11/04/08, aliás mantida por Gilmar Mendes, e a restrição vai totalizando 974 dias. Abraço pra turma do Estadão, há 525 dias também sob mordaça...