sexta-feira, 23 de abril de 2010

Manoel e a morte do presidente polonês

Frederico Mendonça de Oliveira

“Avião Tupolev TU 154 cai com presidente polonês e comitiva de quase cem autoridades polonesas e morrem todos???”, pergunta-se em voz alta Manoel, alvoroçado com a notícia. Só que ele ainda não sabia de tudo, e sua amada Maria, lendo suavemente a notícia que se segue, deixou boquiaberto seu apaixonado marido. Ela pausadamente passou o texto que via no computador: “O presidente da Polônia, Lech Kaczynski, morreu na queda de um avião neste sábado (10), na região do aeroporto de Smolensk, no oeste da Rússia, informou o porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Polônia, Piotr Paszkowski. Havia 97 pessoas a bordo, segundo as autoridades russas, e ninguém sobreviveu. Não há ainda informações precisas sobre as circunstâncias da queda da aeronave, um Tupolev TU-154, que decolou de Varsóvia. As autoridades locais informam que o avião caiu cerca de 1,5 km do pouso, durante manobra de aproximação ao aeroporto de Smolensk. O acidente ocorreu às 10h50 locais (3h50 de Brasília)”. E Manoel se abestalha: “Você disse Smolensky, ó minha Maria? É isso que está escrito aí? Meu Deus, então isso é Katin outra vez! Meu Deus!! Outra vez???”, estatela-se nosso herói. Bem, por que tanto impacto? Por que Manoel se alvoroçou ao ouvir o nome Smolensky, e por que citou Katin? Isto é o que saberemos agora. Enter.
“Primeiro, é pouco provável a possibilidade de mero acidente numa circunstância dessas. Tratava-se de um avião presidencial, cheio de autoridades. Um piloto para essa função tem de ser um mestre graduadíssimo! Falha humana? Pouco provável... Falha técnica do tipo fadiga estrutural ou peça desgastada causando colapso da aeronave? Muito menos provável ainda. Sabotagem? Ora, em todo desastre em que se encontrem reunidos membros de uma organização importante isso é perfeitamente pensável – vide Alcântara, aquela explosão inaceitável ocorrendo justamente quando estava reunida pela primeira e única vez na história da base toda a equipe de cientistas aeroespaciais brasileiros. Portanto, a hipótese de sabotagem ou atentado é mais que procedente”, considera Manoel para sua lindamente atenta Maria. “Mas a coisa seria apenas hipótese entre outras visões até opositivas em conteúdo – não fosse Smolensky e a intenção da viagem. Aí, não nos resta senão botar não uma pulga, mas um cágado atrás da orelha. O que acontece, minha linda, é que eles iam lá homenagear os milhares de oficiais poloneses mortos pelos soviéticos entre setembro e outubro de 1941 na floresta de Katin. Isso é uma chaga na história dos dois países e uma chaga na História. Se a turma ia lá mexer na ferida, fica um tanto estranho demais essa ‘queima’ ser simples acidente. Os soviéticos, naqueles dias de Stálin, tentaram jogar a culpa nos alemães, mas não colou: acabou que a coisa tresandou, e os comunas se viram pilhados como responsáveis diretos pela tenebrosa chacina, tudo completamente comprovado, tudo irrespondível. Começou com a averiguação dos projéteis encontrados nas nucas dos cadáveres: projéteis Greco, impróprios para as armas dos alemães, Mauser e Walter. E aí ficou claro que os soviéticos caíram em escandalosa incriminação”. Nosso herói respira, se recompõe apoiado na pia em que se encosta há dez anos tomando cerveja e conversando com sua amada, sempre sentada na diagonal dele na copa, dificilmente sem gato no colo. Manoel para e reflete, e se inspira de novo, olhos brilhando de lembrar coisas. Enter.
“Pois é, minha linda. Li há bons dez anos O Massacre de Katin, do Sérgio Oliveira, gaúcho, pesquisador de grande garra. Escrita simples mas correta e muito rica e direta. Pois ainda reli, consultei também por várias vezes, e o que tenho a dizer é mais sério ainda. É que a atual Rússia tenta cinicamente deletar da História essa mancha incriminadora, aliás ato de inadmissível barbárie, e a Polônia verga até hoje lembrando seus filhos, a elite militar do país, todos covardemente assassinados. E ultimamente o Putin – que não sei se não passa de um putinho, basta lembrar a aliança dele com o boçal Bush – até andou admitindo a responsabilidade total da União Soviética no massacre. Isto depois de, por diversas vezes, a Rússia tentar escapulir da responsabilidade. E agora a Polônia se posiciona sem escolha, porque o problema se encavalou a partir dessa tragédia tão no espírito de uma ‘coincidência’”. E Manoel e Maria se entreolham espantados, quando Maria mostra no monitor a imagem do piloto polonês Robert Kubica, da Renault, uma fisionomia pra lá de intrigada, mas também com algum traço de incredulidade e de abjeção diante do fato. E as declarações dele são cautelosas até, mas apontam para uma dúvida cruel: “O acidente também tirou a vida da cúpula do (atual) exército do país. A aeronave rumava para a cidade de Katyn, onde haveria uma cerimônia para lembrar o 70º aniversário do massacre ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial - milhares de prisioneiros de guerra foram assassinados pelos soviéticos. Estou muito abalado e entristecido pela notícia desta tragédia, que não tem precedentes em nossa nação. O dia de lembrar as vítimas de Katyn se tornou uma data de luto para o povo da Polônia, disse Kubica, com cara de encafifado. Enter.
“E agora, que fazer??”, pergunta-se Manoel olhando para sua concentrada Maria, que encara o caso com uma atenção especial e muito aprofundada se comparada à atenção com que sempre olha questões políticas. Na verdade, trata-se de uma questão diplomática extremamente delicada, e temos uma Polônia que não pode deixar de se sentir atingida em cheio e violentamente humilhada pela segunda vez em 70 anos e pela mesma gravíssima questão”, dispara nosso herói equilibradamente excitado pelos conteúdos da nova possível chacina. “A dúvida será atroz, não mais poderá sair da cabeça dos poloneses a idéia de uma bomba a bordo, de uma peça especialmente sabotada para colapsar sob as condições críticas do pouso, mesmo de um míssil terra-ar ou ar-ar. Neste último caso, bastaria um caça disparar um míssil tipo Sidewinder ou um Sparrow em versão russa e dar meia-volta e sumir. Se houvesse alguém que testemunhasse isso se atreveria a abrir o bico? Enfim, mataram milhares de oficiais na Segunda Guerra; agora morrem 97 em suspeitíssima tragédia... e alguém vai querer seguir atrás dessas perdas? Alguém vai querer se expor a uma sanha dessa ‘natureza’?”, rumina Manoel. Enter final.
Um discretíssimo sorriso banha o rosto de Maria quando ela vê Manoel estacar diante da geladeira e ficar quieto ali pensativo. Ele põe a mão na porta e... Maria já vai pegar o copo especial dele, uma caldeireta com grife de cervejaria... e também pega o copinho dela, um copo usado em São Paulo para servir “pingado”, também miniatura do “garoto” que era usado no Rio na década de 50. Sai a loura do congelador, e eles ternamente brindam, concentrados, e passam a conversar em silêncio, tacitamente dizendo: “Deus olhe pela Polônia!”. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!