sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Manoel reverencia Nando Fiúza

Frederico Mendonça de Oliveira

“Quem está vivo pra morrer não custa!”, disparava a avó de Manoel, Virgínia, por sinal uma lusitana que educou seus filhos na base da porrada grossa e dos ditados populares correntes na Ibéria. “Pra morrer basta estar vivo!”, dizia também a senhora em outras ocasiões, mas também em que o cheiro cavernoso das vestes da Indesejável e o entrever do gadanho letal ocorriam causando arrepios quando da passagem de alguém conhecido para o beleléu. Manoel ouvia tais frases fatais com o respeito de quem ouve uma sentença sobre o infalível, mas a força da vida sempre vibrou mais forte nele, e tais falas, embora lhe calando fundo, logo saíam de sua mente dando lugar ao brilho da chama alegre do existir simplesmente, de prosseguir, de amar, de sentir a gratidão pela existência que Deus concede aos Seus. Enter.
Pois eis que desta vez Manoel levou um pesado golpe no peito. Foi duro saber, embora este espectro já rondasse a vida de muitos há mais de 40 anos: o artista plástico, artista gráfico, fotógrafo e pensador Fernando Fiúza, anjo que iluminou nosso espaço artístico e cultural desde priscas eras neste lugar brasilis, afinal cedeu ao gadanho da Inimiga, à tesoura de Átropos, e eis que cruzou o Aqueronte, deixando-nos neste chão a cada dia mais árido, mais desfalcados de corações benignos. Manoel olha condoído para o céu, sabendo que numa próxima ida a BH não estará mais com seu amigo querido, bravo resistente pela causa da beleza e da vida, artista de fina têmpera que produziu profusa e lindamente até seu aceno de despedida a este mundo. Enter.
Manoel conheceu Nando Fiúza quando seu amigo músico ralava muito sofridamente o couro em Belo Horizonte em 87. O amigo tentava se reestruturar profissionalmente naqueles já então corrompidos tempos, em que o ar não apresentava mais a transparência de tempos outros e em que já se entrevia no cenário da vida um sombreamento estranho, um desbotar esquisito de coisas e fatos, um já indisfarçável odor de tetrametilenodiamina, sinal da existência de carniça. Mas o amigo lutava duro, e tinha com ele a mão de apoio de Mônica Sartori, anjo que Manoel admirava em silêncio prenhe de admiração. O amigo músico se esfolava numa busca de consolidação de um rumo nas artes plásticas, e Manoel via com alguma dúvida a possibilidade de aquilo vingar. A turma de BH recebia o cara muito bem, a Mônica era uma desdobrada e atenta madrinha, mas todos ficavam na expectativa de ver o cara voltar a empunhar sua guitarra lendária, e muitos até pensavam: “Quero é ouvir aquela música forte e pungente, isso é que é o cara!”. E eis que nessa batalha encarniçada contra o infortúnio aparece em cena o angelical Nando Fiúza, com aquela beleza de entidade pertencente às legiões do bem Quando Nando ouviu o som do amigo no disco solo, disco aliás que virou cult, arrepiou-se todo, e se converteu imediatamente ao trabalho do cara. E logo começaram a produzir juntos, e foi uma deslanchada bonita, que acabou em shows musicais que deixaram marcas indeléveis, unindo o amigo ao Nando para sempre. Nando fazia os cartazes com sua arte fina, fotografava com sensibilidade especial o amigo, acabou que ficaram irmãos inseparáveis nesta vida. Manoel, em suas constantes idas às Alterosas, coabitava esse conúbio de artistas febris em sua tarefa de busca, integrava os papos, as excursões pelas ruas contemplando a arquitetura art décco abundante na cidade, as idas a galerias e vernissages, as chopadas na noite belorizontina – e isso o ligou também profunda e fortemente ao adorável Nando Fiúza. Enter.
Manoel se grilava ao ver, naquelas noitadas, que Nando apresentava roxidão nos lábios e dedos quando a madrugada avançava. Um amigo comum, aliás médico e poeta de estro ardente, Gilberto Nable, um dia deu o serviço: Nando sofria de cardiopatia congênita, e os sinais eram aquela roxidão, as unhas de “vidro de relógio” e os dedos em formato de baquetas de tambor. Aflorado isso, Manoel logo percebeu que todos estavam ligados, e que todos viviam com o Nando aproveitando tempo, dias, horas, minutos que se apresentavam como dádiva de convívio com aquele homem que todos sabiam condenado. Isso rolava em 1987. E todos em silêncio pediam que Nando não se fosse logo, que ficasse mais, que resistisse, mas era chover no molhado: Nando amava tão apaixonadamente viver que, milagre!, reunia forças de enfrentamento da anomalia de forma cientificamente inexplicável. E lá ia Lachesis enrolando o fio da vida de Nando, e Átropos de tesoura na mão ficava sem entender por que o fio não lhe chegava logo à mordida fatal das suas lâminas. Talvez isso ocorresse porque Juno, que sofrera o golpe da morte de Argos, o gigante de cem olhos e que nunca dormia – olhos que ela botou no rabo do pavão em homenagem ao aliado cruelmente morto por Júpiter –, sentisse por Nando, semideus apóstolo do amor e da beleza, uma ternura especial, e com isso afastasse da tesoura da Parca da Morte o fio da vida dele. Enter final.
Pois Nando resistiu por mais de 40 anos, coisa inexplicável para caretas. Só Manoel e o amigo desfrutaram do viver encantado de Nando por belos 32 anos! E eis que em 2003 Manoel presenciou um belo reencontro de Nando com o amigo no Bar do DCE, e na ocasião Nando, que integrava como co-produtor o certame de que o amigo participava, deu a ele, com carinho efusivo, o livro Retratos da Música, em que uma das fotos era do amigo, e revelava o artista plástico, não o músico. A dedicatória, que Nando produziu em segundos, é outra obra de arte anexada ao livro. Depois disso, alguns encontros cheios de entusiasmo e encantamento, até que veio de lá para este infecto Arraial das Bagas a dura notícia. Nando se fora. E Manoel e o amigo, aturando a coisa quietos aqui, mal podiam emitir palavras: as lágrimas de ambos desciam, diante dos olhares consternados de Maria e da mulher do amigo, como pequenos cristais líquidos de uma alegria convertida em dor. E o peito de ambos doía em constrição pesada, e pronto: Deus chamara Nando Fiúza para Si. E Manoel disse para o amigo e para as duas amadas, falando sorrindo e vertendo lágrimas: “Só sei que quando nós chegarmos lá o Nando nos receberá bem na entrada, com aquele sorriso sempre encantado!” E viva Santo Expedito! Oremos. Bye...
ATENÇÃO: JÁ ESTAMOS CENSURADOS HÁ 574 DIAS. A CENSURA A O ESTADO DE SÃO PAULO, QUE SOMA 100 DIAS, JÁ ESTÁ CONDENADA ATÉ EM ÂMBITO MUNDIAL. QUANTO A NÓS...
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Postado por Frederico Mendonça de Oliveira - Fredera