sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Manoel e a mixórdia no arraial e na Pindorama

Frederico Mendonça de Oliveira

“Foi-se o encanto de tudo/ quem sou eu? Quem é você?”, cantava Miltinho com aquela voz nasal de doer, no fim da década de 50. “Puta merda, era um mau gosto sem freio!”, comenta Manoel com seu amigo Fox, sob o olhar cúmplice e encantado de Maria, que deixa de lado seus estudos e assimila os conteúdos da conversa de dois lobos do mar da pesada, dois experimentados nautas na travessia dessas décadas, dizíveis como “esses anos de merda”, quando, depois da chegada da Bossa Nova e da conquista da taça Jules Rimet (devidamente roubada por brasileiros à margem da História e a quem só interessa os quilinhos de ouro do troféu, sabe-se lá pra trocar por quê...), o Brasil sofreu a intervenção que selou o começo do fim, fim, aliás, já presente e visível no ar, nas ruas, nas fuças dos pobres diabos vestidos de gente e misturados e fundidos com carros, nesses dias de absoluta feiúra, feiúra, feiúra, dias que comprovam que “foi-se o encanto de tudo!” Enter.
Começa com as crianças. “Se nos doía desde nossos tempos de meninos ver crianças no colo de miseráveis e já vivendo a miséria como aprendizado de um caminho a eles imposto desde o berço, hoje é pior, muito pior: vemos os pirralhos classemé(r)dias transformados em cínicos desde a mais tenra infância. Se não lhes faltam condições materiais, o comer e o vestir, além do consumir – claro, isso de consumir é religião desde o útero! –, faltam-lhes rumos, parâmetros, referências, falta-lhes o peso benigno das instituições. Esses fedelhos hoje são cínicos em tudo, até nos ‘direitos adquiridos’, herança da era de corrupção de que são depositários. Andam como maluquetes desvairados se achando lindos mas sentindo, no íntimo (?), a pressão de uma vacuidade que lhes molesta de forma horrenda e ameaçadora a essência da alma... e ei-los marchando em passos de gigante a caminho do crack, do crime, porque desenredados dos valores da vida e envolvidos por uma política torpe que lhes desenha e prepara a desgraça para pouco tempo adiante. Eles serão milhares, mesmo centenas de milhares de Rafaéis Bussamra e Gabriéis Henrique Ribeiro (26 e 19 anos), que fria ou estupidamente cometeram homicídio doloso pelo atropelamento de Rafael Mascarenhas, 18 anos, filho da atriz Cissa Guimarães, no dia 20 de julho passado. Eles serão como os que, frustrados ante a derrota de seu clube no último campeonato brasileiro e encharcados de crack, apedrejarão a tijoladas a casa de um vizinho e o ameaçarão de morte porque ele torcia por time outro, que se sagrou campeão. Eles serão os que, em talvez menos de uma década, jogarão filhos pela janela do apartamento, assassinarão pais a golpes de barras de ferro e depois irão para motel e ainda chorarão no dia seguinte, teatralmente, no enterro de suas vítimas, mortas fria e monstruosamente. Eles engrossarão o exército do tráfico, dos viciados em crack e outras drogas letais, furtarão, roubarão e matarão para conseguir uma ‘pedra’, ganharão notoriedade não na mídia dos famosos, mas nas páginas policiais do Oiapoque ao Chuí!”, perora sereno Manoel para Fox e Maria, ambos atentos e curtindo a oratória contundente de nosso herói, que se manifesta entre veemente e contristado. Enter.
Fox hesita em se manifestar também, mas, de tal forma tem verificado sua impotência diante do cinismo e da deformidade demonstradas diuturnamente pela vizinhança que o persegue por puro sadismo e compensação de frustrações profundas, que apenas sorri um sorriso um tanto triste indicativo de comiseração diante do pior. Mas logo muda seu súbito mas passageiro estado de humor, em que sobressai uma visível dose de piedade, e ei-lo criticando com elegância o estado mental dessa vizinhança conduzida pelo poder corrupto e corruptor a um estado de decadência patética: “Eles são todos como frangos de granja, desmiolados e enclausurados em suas gaiolas em que lhes ministram ração cheia de anabolizantes, vivem totalmente à mercê do que interessa a seus donos. Como cães, ou ainda mais submissamente que esses animais abestalhados, curvam-se ante as ordens de corruptos com a felicidade de quem recebe um afago, como uma dádiva... e mergulham ávidos nessa insanidade e envolvem também crianças, fazendo-as desde cedo participar politicamente de um crime descarado, com isso potencializando o alastramento do câncer da corrupção ativa e deslavada...”, e Manoel e sua Maria exultam ante o desabafo de seu grande amigo: “Não fosse tão cedo e não tivéssemos tanto por fazer ainda, era o caso de brindarmos com uma loura geladézima, não pela podridão que avança tão feiamente, mas pela verve de nosso amigo músico, que só em momentos especiais abre seu coração transformando tanta miséria em fala tão fecunda!”, festeja Manoel com sua Maria, toda sorrisos, divertindo-se com o fato de o músico ter consistente formação literária e artística em diversas direções, coisa raríssima na esfera da música, especialmente na praia do popular. E o trio acaba que inaugura a participação de Maria como proponente crítica: “O que mais abestalha é considerar o mau gosto dessas vidas, especialmente o inferno em que se debatem, obstados de lucidez e compreensão porque voltados para desejos e matéria. E, o que sobressai como a maior das contradições, querem suprir seu vazio existencial decorrente da conversão à matéria com quê? Pasmemos: com mais matéria ainda!”, e todos se riem gostosamente, evitando gargalhar – porque gargalhadas são arriscadas, espiritual ou intestinalmente... Enter.
“O que afinal está acontecendo com o Brasil? Como conseguimos involuir tanto politicamente depois de quase duas décadas lutando pela democracia? Como pode o Brasil, em pleno século XXI, cair na armadilha já tão velha do populismo barato e abjeto que acabou com a Argentina, que amarrou o México por tantas décadas? Como pode cair na armadilha do ‘salvador da pátria’, do ‘pai dos pobres’, etc.? Não amadurecemos nada nesses anos todos? Esquecemos tudo o que a História já cansou de nos ensinar? Teremos tempos melancólicos pela frente”, escreveu um leitor de um texto do Nelsinho Mota num jornalão aí. Certo, até irrespondível. Claro, a fala do Nelsinho cai meio que bandeirosa no ideário do Império, tem a estética desfaçada e hipócrita dos “valores” do Império, tem até mesmo o ponto de vista e a clivagem do Império. Mas o garotão que apoiou o Nelsinho falou de forma neutra, levou pra onde devia. Enter final.
E o trio prossegue se divertindo, trocando impressões sobre as roupas das dondocas que frequentam a pracita malignizada, parecem umas malucas nas malhas de classemédias ideologicamente radicais, parecem iscas de ginástica paga em academias, são vulgares, empetecadas, produzidas, enfim: RIDÍCULAS! “Basta pensarmos no que vai naquelas cachimônias para que nossos fígados se desopilem à farta!”, fala Maria com graça, elegante em suas vestes soltas caindo harmonicamente sobre suas grandiosas formas gregas, e o trio se harmoniza em risos e alegria, considerando o desastre que avança ameaçador sobre os seres transformados por si mesmos em coisas, em objetos. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 854 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 399 dias...