Frederico Mendonça de Oliveira, Fredera
Só um oligoqueta vestido negaria o valor da produção cancionística desde o começo dos anos 1960 até o final dos 1980. Sob esta fase, o Brasil vergava encantado ante as canções de Chico Buarque, Edu Lobo, Dori Caymmi e Nelson Mota, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, e depois viriam João Bosco e Aldir, Gonzaguinha, Ivan Lins, Djavan, Alceu Valença, formando-se então a talvez mais fecunda etapa de produção de canção no Brasil, quiçá no velho planeta.
A canção “entrava em alta”: os festivais de canção, lançados lá por 1962 com A Voz de Ouro ABC, patrocinado por uma fabriqueta de rádios, ganharam investimento poderoso, e o Brasil se envolvia com canção via TV aberta, era a novíssima cachaça. Pudera: a genialidade dos rapazes, tal como na já preterida Bossa Nova, era de abismar meio mundo. Nem nas décadas de 30 e 40 nos EUA se produziu tanto e tão maravilhosamente, ou talvez vá um belo páreo aí. E veio o FIC, globalizando os certames, trazendo canções titicas de fora, e eis uma nova realidade “musical” brasileira, laboratorizada nos festivais: começava a era MPB, ou Música Popular Brasileira, depois “emepebê”, ou “canção de mercado”, e isso coincidia com a ditadura militar, desde aquele 1964. Ué.
Os que promoviam jogavam alto, e poucos entreviam as entranhas da mudança: sob tanta beleza, vinha embutido um mortal contrapeso. As aspas em música acima denunciam que se impunha uma perversa hegemonia da canção. O Brasil musical que acabara de chapar o mundo com a Bossa Nova, fazendo o jazz tirar o chapéu para Tom/João, Maurício/Durval e quejandos, desabaria feio sob a avalanche cancionística, e assim ruiria também toda uma tarefa cultural e artística potencializada na era Vargas e que também revelava um Brasil “melhor do mundo”, pois nossa produção em tudo – literatura, música erudita, pintura, teatro, cinema e até futebol – embasbacava para além-mar. Tudo isso explodia no ano da graça de 1958.
O que se seguiu, todos sabemos. Todos? Sabemos? As carreiras dos cancionistas geniais já citados consolidaram um olimpo tupiniquim em que os deuses eram os compositores de canção, e o resto era resto. A primeira baixa foi a música. Sim, porque a canção subalternizou perversamente os pensadores musicais, submetendo-os a apenas coadjuvar em palcos e discos. Criou-se, através do capital multinacional, a casta dos cantores compositores com status de artista, e o restante passou a acessório, descartável, até incógnito. Toda uma plêiade de criadores musicais conheceu a desidentificação no meio em que até há pouco exerciam a titularidade e a dianteira da música brasileira. Mudaram de ramo, viraram produtores de estúdio, músicos frilas, largaram-se carreiras, alguns vários tombaram. E alimentou-se um mito cruel, golpe cínico desviando atenções e falseando a estúpida situação que nos vitimava.
É que os intérpretes de canção, endeusados, passaram a representar a resistência à ditadura. A canção de Chico ou Milton espetava vez por outra o poder militar, também Caetano e Gil foram incomodados no início, mas não houve um posicionamento real, apenas um distanciamento. Depois, tudo se ajeitou, e a lenda de Roberto Marinho avisar aos militares “Não mexam nos meus comunistas!” passou a vigorar parecido para com os cancionistas. Aliás, Robertão abrigava em suas telenovelas boa parte da produção dos ícones da canção já tidos como resistentes ao regime de força. A canção O que será que será convenceu toda a classe média, era como o grito de liberdade do povo contra o regime, e dela para adiante tudo desaguou... na pífia pantomima da redemocratização.
Só que, passada a fase militar, curiosamente passou também a canção emepebê: por mágica, todos os gênios da canção foram postergados, passando a vigorar uma nova ordem “estética”. A lambada abriu a nova fase, que trouxe o breganejo, o pagode pasteurizado, o axé, as danças “eróticas” como garrafa, cordinha e hoje o “créu”, e a classe média balante mal sacou a mudança, considerando-a normal, “novos tempos”. Os ícones foram compulsoriamente aposentados pelo CD, e toda aquela articulação de fantasia, embora marcada por produção cancionística de grande teor, virou passado e hoje está esquecida, treco defasado e descontextualizado, corpo estranho.
A pergunta é: os ícones da canção emepebê saberiam estar trabalhando direta ou indiretamente contra o Brasil? Saberiam que a hegemonia da canção era golpe fatal no restante da cultura e arte brasileiras? Saberiam que estavam contribuindo para desidentificar o Brasil no que eram enriquecidos em detrimento de tantas outras aspirações de tantos outros pensadores e criadores? Saberiam que a hegemonia da canção seria algo anti cultural irreversível? Saberiam que ajudavam no lucro e gáudio das multinacionais contra nossa identidade cultural? Que valor podem ter aquelas lindas canções se hoje elas ecoam num país morto? Bolívar disse: “É melhor estar morto num país vivo que vivo num país morto!”
Gláuber costumava deixar a turma em apuros quando perguntava a pretensos artistas: “Como você pensa o Brasil?” A resposta jamais foi dada. E o resultado está aí. Éramos o país de Tom, Villa Lobos, Ary Barroso. Hoje somos o país da Egüinha Pocotó, do Tigrão, do Créu. A emepebê, sob hábeis mãos, e mesmo com toda a sua grandeza, operacionalizou o aborto.