Frederico Mendonça de Oliveira
“É duro lembrar, ó Maria, hoje contam-se 65 anos de uma das maiores brutalidades de todos os tempos: a bomba sobre Hiroshima. O comandante do Boeing B-29, batizado de Enola Gay, lançou a bomba atômica sobre a cidade no dia 6 de agosto de 1945. O piloto, coronel Paul Tibbets Jr., 30 anos, comandava o 509º Grupamento Aéreo dos Estados Unidos, que desde fevereiro de 1945 preparava a missão. E veja a ironia, minha linda: esse Tibbets escolheu pessoalmente uma B-29, batizando-a com o nome Enola Gay em homenagem à que o pariu. Isto é o que podemos chamar de um útero maldito!”, considera Manoel vendo os olhos de Maria quase arregalados, até com um tiquinho de lágrimas marejando-os, fazendo-os ainda mais lindos e ternos. E nosso herói lê algo sobre a monstruosidade: “O número de mortos varia entre 140 mil em Hiroshima e 80 mil em Nagazaki, mas estimativas outras garantem um número muito maior, contabilizando as mortes posteriores devido à exposição a radiação. A maioria dos mortos eram civis”. “Vês tu, ó minha linda?, a maioria dos mortos eram civis! E os mandantes e autores disso não enfrentaram tribunais como autores de crimes contra a Humanidade, e, mais ainda, contra a condição humana e a vida possível no planeta! Pois é: fica aí essa propaganda escrota há décadas falando de atrocidades praticadas na Segunda Guerra, uma jeremiada sem pé nem cabeça, invencionice sórdida, e foram enforcados (!!!!) todos os membros do estado-maior do III Reich como punição a uma controversa chacina por eles conduzida... mas Hiroshima e Nagazaki ficaram assim: 220 mil japoneses pulverizados como formigas, e os donos do mundo calam cinicamente. Onde vamos parar, minha linda??”, discorre nosso herói, que resiste vivo e lúcido a mil mesmo prosseguindo encarapitado entre montanheses retardados e sujos de alma e espírito na aldeia em tudo degenerada, salvo as raras exceções de praxe. “Pimenta no cu dos outros é refresco, minha querida! Por que não se puxou a iniciativa de responsabilizar e punir os Aliados, na verdade um bando de milhões de estúpidos comandados por monstros depravados e desnaturados que odeiam a Humanidade e se dizem escolhidos de Deus??? Então é isso: o mundo vagamente se recorda do genocídio japonês, encoberto desde que se instituiu a propaganda ardente e infindável contra o nazismo. E nem quero entrar em outro terreno, ó linda, não entro a falar no massacre de Dresden, em que foram fritos e torrados mais de 330 mil, TODOS CIVIS!!! Não falo por estar hoje em reflexão profunda diante deste aniversário macabro...”, perora Manoel enquanto considera detalhes da orquestração de uma sinfonia que toca no rádio. Enter.
E nosso herói pára e considera o céu, azul e pacífico, céu bom sobre um arraial em franca degenerescência, e eis que ouvem-se pássaros cantando, as “aves do céu” de que fala o Cristo, e os cães ladrando estupidamente como que trombeteando para fora de onde são confinados a deformidade e infelicidade de seus donos maus, e fica patente o divórcio entre céu e terra nessa comunidade mais e mais cancerificada pela corrupção e pela má índole generalizada. “Neste arraial, ó Maria, ocorre o que jamais foi registrado em lugar nenhum do mundo: pais induzem os filhos inocentes a prática de corrupção, de apoio a crimes de autoridades, e ainda os aperfeiçoam na miséria e na imundície de perseguir os que não aceitam canalhice!”. Sim, a Humanidade parece descontrolada em sua marcha firme e já considerada irreversível em direção ao abismo da História. São chegados os tempos de que o Cristo falou, tempo de choro e ranger de dentes. E Manoel tenta se desviar das constatações que o deixam condoído, e a casa respira um silêncio prenhe de amor e sensibilidade. Silentes, Manoel e Maria voltam seus pensamentos para as vítimas das duas cidades japonesas, e vai chegando a hora do almoço, e o gato preto prossegue pro meio da rua, enquanto o laranjão e branco, doce felino, lindo, prossegue apagado e esparramado na cama do casal, em paz e encanto, sorvendo, diverso dos miseráveis cães dos vizinhos, o amor no doce lar. Enter.
Toca o telefone. Manoel atende, sua fisionomia se acende: “É o Fox, Maria. Está vindo para cá, tem novidades sobre o arraial”, avisa nosso herói, cheio de alegria. E minutos depois toca o sino na varanda, chega Fox com o aspecto de sempre. Parece vergado ao peso da consciência, tem no semblante afixada a expressão típica da lucidez irredutível. Abraços, obas e olás, “como vais tu?” e “tudo bem” e tal, e logo Fox abre o discurso: “Manoel, você precisava estar ontem lá no terminal rodoviário urbano... Está rolando lá, naquele corredor tão impróprio para eventos sonorizados, um encontro que já vai reunindo para um tira-gosto da parada gay os ‘entendidos’ de todos os matizes. Estava eu tomando uma latinha e esperando o ônibus e chegavam e saíam os protagonistas dessa exibição tão controversa. Vocês sabem, me abestalho diante dessas cenas, e o desfile das figuras diferenciadas, ai!, não há como não surpreender e chocar. Em dado momento chegou uma figura enorme, gordalhufa, toda empetecada como mulher, pernas de fora, seios de pura banha balofa, e quando abriu a boca veio aquele som característico, os circunstantes não ‘entendidos’ se atoleimaram contemplando aquilo, e vi olhares apunhalantes lançados de vários pontos. Querem saber? Vi um filme – quando perdia meu tempo com isso – sobre o mundo gay, rodado em San Francisco. Seria o Pacino ou o De Niro, sempre confundo. O que deu firmeza foi a maneira como os caras vivem seu gheto, sem se misturar com os ‘não entendidos’. Era uma comunidade viva e religiosamente coesa em seus códigos e costumes. O local de encontro era uma imensa fábrica abandonada, e lá dentro rolava de tudo. Bonito, o filme, muito boa direção, tudo convence. Mas o mais positivo é que o ‘reduto’ não dava pala: vivia em seu território, longe dos seres por eles chamados de ‘bofes’, que somos nós. Andavam a caráter pelas ruas mas em horários adequados, pela madrugada; circulavam por parques, bocas do ramo. No fim, o personagem central, policial infiltrado no meio deles para investigar crimes que iam acontecendo com certa constância, acaba ‘saindo do armário’. Bem, ficou uma boa lição, o oposto do que vivemos aqui: eles não se misturavam, não havia a promiscuidade que rola aqui, isso de tentar enfiar a diversidade goela abaixo dos não diversos”. Maria e Manoel ouviam a fala de Fox, viajando nas imagens. Enter final.
“Pois vejam: o ônibus já saía quando começava uma apresentação de uma drag queen sob aquele techno infernal, e explodiu uma bomba violenta lá no meio da bagaça. Foi feio, deu aquele susto, mas os caras não se abalaram: retomaram a zoeira, e vim pra casa doído. Pensei em Deus, claro, repeti as palavras do Cristo na cruz: ‘Perdoai-os, Pai: eles não sabem o que fazem’. Me aliviou o espírito. Mas confesso: não sei lidar com isso”. E chegou o gato preto, e a atenção virou para ele, que, puro e sob Deus, pedia rango. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 830 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 369 dias...