sexta-feira, 30 de abril de 2010

Manoel considera a barbárie social contida

Frederico Mendonça de Oliveira

“Ó Maria, vou até o centro com o confrade Fox, que ele tem uma rescisão na delegacia do Ministério do Trabalho. Queres que eu traga algo daqueles meandros?”, pergunta Manoel para sua amada, atracada já de manhãzinha com os afazeres, próxima por sua vibração sempre receptiva para seu Manoel; distante, porque concentrada de todo na condução do dia no lar. “Se quiseres alguma besteirinha para ti, para incrementar o almoço, compre. Para mim, nada.”, responde ela. Beijando sua perfumosa mulher, Manoel sai para o cenário da bestialidade conflagrada, que já se desenrola a céu aberto no arraial. O amigo Fox já vinha passando para subirem de ônibus – ambos rejeitam radical e conscientemente o automóvel, um dos ingredientes mais ativos na manifestação da decomposição urbana e humana –, e já percorrem em franco diálogo o quarteirão até o ponto do businho. O assunto logo se engata: o amigo Fox, recentemente dispensado de seu emprego, um serviço que não conseguia prestar há anos por boicote de bugres locais invejosos e degenerados, está indo enfrentar o acerto rescisório na delegacia do Ministério do Trabalho e Emprego, mais um ambiente kafkiano petista a suportar. O busildes chega, eles embarcam, meia dúzia de fuças os fitam bestamente. Olhares vacuns, vazios de teor ou conceitos, olhares de zumbis, de objetos sociais vestidos. A conversa entre Manoel e Fox prossegue, agora pespontada por episódios de constatação de ambos diante do quadro “humano” que os cerca. Enter.
“Ah, as novas mulheres jovens, mães de classe média!...”, desabafa Manoel com seu amigo, ambos considerando umas dondocas empetecadas de malhas de cores contrastantes e berrantes deambulando a esmo pela rua. Andam assim, de tênis de marca, cabelos com reflexo, carros do ano, crianças estupidificadas a tiracolo, miniaturas refletindo quem elas são. Roupas apertadas, de ginástica, buscando sensualidade mas despencando no brega, todas parecem umas réplicas de anamariabragas. Os filhos a tiracolo, ansiosos, perdidões, parecem mesmo lourojosés. Dentro das mentes delas, desejos. Produtos de consumo, desde o shampoo até o desodorante de pés. Vestimentas e calçados, só os apregoados como top da indústria das aparências e do conforto. Os panos, coisas impensáveis, indicativos de vazio mental. Malhas esportivas, calças de lycra, relógios espalhafatosos e normalmente ridículos, jóias. E os lourojosés, projetos de consumidores obtusos e renunciantes da própria existência por injunção do Sistema, condenados ao Português do “vô vim”, do “nóis vai”, do “trais pra eu”, do “daqui dez dias” e à busca estúpida e inútil da satisfação material imediata, esses são os “homens de amanhã”... “Homens de amanhã?? Estes são os homens da pré-história da Humanidade!”, comenta Manoel com Fox, que com ele contempla os “seres” que formigam tolamente pela superfície deste arraial, superfície que mais se assemelha a profundezas... e a dupla vai subindo o morro aboletada no coletivo e sacando tudo à volta. Enter.
E lá vemos os dois diante da delegacia do “Ministério do Trabalho e Emprego”. Fantástico!: está fechada a corrente e cadeado, e na varanda está afixado um cartaz informando estarem os funcionários da instituição em greve por tempo indeterminado, e o cartaz ainda expressa um conceito justificando a greve como “para melhorar” atendimento ou eficiência. Uma cascata lá, um agá. Manoel e Fox trocam um olhar de ficha caída na cuca, e a pergunta lá vem: “E essa, agora??”, e logo Fox liga de celular pro advogado, que o aconselha a ligar pro empregador. E lá vai a sucessão de passos atrás do prejuízo – afinal, os dois subiram pra isso, já perderam parte da manhã nessa batalha, agora vão fazer o quê? “Bem, agora é aturar a novidade e correr atrás do tempo perdido”, considera Manoel pra o amigo lúcido diante do óbice. E já os vemos de volta ao centro, destoando vibratoriamente da grosseria coletivizada e instituída que pulula pelo espaço urbano visivelmente apocalíptico. Vendedores ambulantes, jovens vestidos com extravagância típica do desamparo em todas as dimensões, seres vagando parece que unicamente para levar a passear a carantonha exprimindo o próprio fracasso, outros exibindo sem cerimônia a facies da infelicidade a que se resignaram como irreversível. E carros, carros, carrões, veículos, anúncios em profusão para vender, para excitar o consumo, e zumbis vagando a esmo, percursos vazios pelo teor do simplesmente obrigatório, a obediência servil à obrigação como sendo vida, quando é exatamente o oposto. E tome carrocinha de água de côco, de sorvete barato, recolhedores de lixo e papel, meninas esticando faixa quando o sinal fecha, moleques sem rumo macaqueando perdidos e excitados por pura energia da infância, cachorros integrando a cena do Estado em frangalhos. Nenhum gato visível, claro, que gatos não integram barafundas ridículas. Enter.
“Engraçado, caro Fox, observe que a explosão e o despedaçamento são visíveis como ingredientes desse quadro dantesco de social em absoluto colapso vivo, mas alguma força mantém esse estado de coisas sob contenção e controle!...”, considera Manoel meio que descoroçoado, como que somente cumprindo a obrigação filosófica de praticar a consciência crítica. O amigo Fox, músico mas pensador, homem dado ao estudo e à leitura em profundidade, mete sua frase jazzística em apoio à colocação de Manoel: “Alguma força controla isso, óbvio, porque é a mesma que engendra isso. Só nos resta questionar se isso poderá escapar ao controle dos responsáveis por esse quadro conjuntural. Talvez sejamos supreendidos por um desmoronamento desse edifício de horror, mas a mim parece que somente através da fúria dos elementos, porque toda essa feiúra e tanta desarmonia devem estar agredindo a ordem e a estética da Natureza". Enter final.
E nossos enviados ao mundo dos zumbis já naturalmente se encaminham de volta para seus domicílios, frustrados apenas por terem perdido tempo e por verem a perspectiva de prolongamento dessa tarefa de recolher os caraminguás devidos ao impoluto Fox, artista assumido como tal e de todo desinteressado de qualquer aparição pública tocando sua música refinada. Música, esta, imprópria para ouvidos córneos, moucos, emporcalhados e incrustados por matéria sonora deletéria que o Sistema despeja como terrorismo visando abestalhar, alienar, burrificar. E lá tomam o busildes de volta, vazio morro acima, fugindo da turba ignara que pulula alhures. “Sabe-se lá que fazem em casa essas criaturas que vagam por aí, réplicas de seres humanos entupidas de desejos e sob tratamento de choque televisivo”, considera Manoel em conversa de despedida com Fox enquanto os dois contemplam a fauna imbecil que formiga ou se aboleta burramente pela pracita sem objetivo que não uma subserviência cega ao poder absurdo e intangível. E Fox completa, bem humorado: “Per publicam viam ne ambules”, e os dois amigos se despedem com o riso cúmplice dos sabedores das coisas. E Manoel volta para sua linda Maria, que já perfuma a casa com os aromas do almoço. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!