sexta-feira, 9 de julho de 2010

Manoel e a imprensa desvirtuada

Frederico Mendonça de Oliveira

Leitor diário de webjornais, onde busca apenas subtextos ocultos nos fatos jogados no dia-a-dia do arraial, do estado, do País e do planeta, Manoel anda atarantado: “Ó Maria, em dois dias, em duas sentadas rápidas para checar os jornais online, descobri simplesmente uns 20 erros, entre uso incorreto de vírgulas, crase, preposições, formulações equivocadas e por aí afora. Uma vergonha, minha linda, uma vergonha!”, e assim nosso herói constata uma nova ferida na avançada deterioração social: um colapso idiomático, reflexo inevitável de um colapso social já plenamente vivido por todos, embora devidamente escamoteado e controlado em benefício dos que disso consciente e mesmo dolosamente amealham. “Se é um crime, tem de haver o criminoso, e a pergunta, minha caríssima, é: ‘A quem isso beneficia?’, pois qualquer crime tem uma intenção de alguém, implícita ou explicitada. Tu deves lembrar, linda, de quando aquele Jean Ziegler, de ‘A Suíça lava mais branco’, declarou em visita a esta Pindorama que ‘Fome no Brasil é genocídio’, ou não te lembras disso? Pois é: tem quem lucre com essa fome imposta, com finalidade definida!, e a depredação do idioma é coisa nessa mesma linha, com pequena diferença de forma!”, e Maria aquiesce em silêncio, levemente confirmando com movimento discreto de sua cabeça divinal. E o casal queda em silenciosa conjetura, contemplando no éter o cenário de depredação que se abate sobre todos nessa conjuntura pré-apocalíptica. Enter.
“Parecem-me, linda, no que observo os sudras e zumbis que deambulam palrando aqui no arraial e mesmo alhures, que os mineiros subvertem o idioma através do uso corrompido da preposição, isso é mais que visível, é diário, doi (ó), machuca nossos ouvidos e nossos espíritos. Eles dizem que ‘Ele é apaixonado nela’, ‘Fui no cinema’, ‘Chegou no segundo andar’ e uma infinidade de coisas que tais. Quanto a pronomes oblíquos, é outro desastre feio: ‘Chama EU’, ‘Traz pra EU’, por aí afora, direto. Só falta agora ser oficializado o uso do verbo VIM, de tal forma se consolidou a preguiça estúpida de falar corretamente associada a um estranho desejo de enveredar pela decadência assumida, traços de doença social grave nesta Brazuca terminal: não demora, aparecerá um PODE VIM em jornais on-line, mesmo em edições impressas. A regência verbal vai despencando, já de há muito saiu do botequim, da birosca, do barbeiro, e ei-la descendo aos meandros do puteiro, às ruas onde se rodam bolsinhas, sendo estuprada nas bocas de morros, eis o idioma sendo pisoteado pela indigência que avança como câncer galopante!”, discursa algo inflamado nosso herói ao divisar a estética da periferia e da proletarização generalizadas para onde quer que se vá. Enter.
Pois quando de uma incursão em bairro de periferia para uma consulta técnica a um violeiro reconhecido até nas estranjas – mas que aqui enfrenta uma perversa indigência –, Manoel constatou mais um detalhe aterrador: tendo diante de si, estando em ponto elevado, uma vista ampla dos bairros de periferia e vendo os prédios do centro emergindo disso ao fundo, veio um desagradável insight. Ele verificou de repente que o centro, que há menos de 30 anos era ainda a cidade propriamente dita, está hoje envolvido por todos os lados por um descomunal oceano de bairros onde prolifera em explosão irracional uma nova população proletária. E esse centro hoje é uma ilhota asfixiada perigosamente por esse imenso oceano... que tende a se duplicar, triplicar. Advirá disso uma deformação urbana e social em que todas as instituições serão substituídas por uma nova lei, da selva, do cão, e eis engendrado e já em funcionamento um horrendo caos. E o amigo que acompanhava nosso herói nessa empresa, um músico médico de mente privilegiada e sensibilidade rara, lembrou a conversa que teve com um policial, que disse muito claramente que a polícia está apenas cumprindo as obrigações que pode cumprir, mas nem de longe pode fazer frente à criminalização no seio da pobreza, que avança a mil. “Em cada quarteirão”, lembrou o policial, “existe um ponto de drogas; no mínimo, um. Como fazer frente a isso? Estamos em completa e irremediável desvantagem!”. E esse amigo de Manoel, que em plantões enfrenta atender às numerosas vítimas desse estado de coisas, gente esfaqueada, baleada, espancada, conclui, em tom desiludido: “É, meu amigo, já era, tudo!...”. Enter.
E tudo se aquece e movimenta sob a conflagração do caso do goleiro Bruno, que incendeia noticiários e alimenta conversas e fantasias várias, como se de repente todos gritassem por justiça e sonhassem com uma solução drástica e implacável para o caso, tudo alimentando as fantasias compensatórias de milhões de frustrados, e Manoel mais uma vez tem de se posicionar, para estar em dia com os fatos limpos, livres de sensacionalismo ou deformações: “Estamos diante de mais uma horrenda manifestação de bestialidade humana. As cenas que podemos ver ou as que podemos imaginar são imagens de uma barbárie que temos a nosso redor em estado latente, e isso pode ser desencadeado de repente, sem qualquer aviso, ó Maria. Basta vermos o que passou e passa nosso querido Fox, um músico, intelectual provecto, um ser inofensivo e que anda dentro da lei, sob a sanha dos que apoiam (ó) corrupção e usam unhas e dentes para figurar no rol de amigos dos poderosos corruptos do arraial..., e por pouco não sofremos monstruosidades como as praticadas nesse caso Bruno, ficou no quase: casa do amigo bombardeada por tijoladas por um vizinho em surto de overdose de crack; delegado vindo tentar agredir o Fox no portão deste; constrangimentos, agressões verbais, calúnias, injúrias, perseguição judicial, quem diria que um dia pudesse aflorar tanta deformidade e que estivesse tudo isso incubado na alma desses aparentemente inofensivos vizinhos? E veja que Fox era amigo, camaradíssimo de toda essa gente doente, gente hipócrita, covarde, uns ignorantes de maus bofes!, tinha a todos em alta conta e respeito, e agora explode esse tumor e espalha pus e miasmas pra todos os lados, transformando um espaço, antes tão pacato, em área sob litígio e onde impera a prepotência e o ódio dos degenerados!!... E não se pode acusar Fox de ser um otário, por ter posto fé nessa gentuça!... Enter final.
E eis o Bruno entregue à polícia, e toda a torcida rubro-negra envergonhada pela revelação de tão atroz espírito oculto na figura de um ídolo, e lá aparecem, misturados a curiosos, torcedores de clubes rivais envergando camisas de seus clubes, é o caos. “Estamos á beira do abismo, ó Maria! A decomposição do tecido social vai a mil. Realmente duvido de rolar aquele golpe de Estado internacional tão prometido por eles...”. E viva Santo Expedito! Oremos. Té pra semana, babes!

Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 802 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 340 dias...