Frederico Mendonça de Oliveira
“Ó Maria: parece que eu não tenho o discernimento amadurecido como os outros, que concordam com tudo, aceitam tudo e dormem como suídeos, roncando e peidando esquecidos do mundo e da vida! Por que terei eu de ser diferente dos que cultivam hemorróidas de tanto manter o bufante na cadeira, no sofá, no banco do automóvel, por que terei eu de me perguntar sobre a real importância da Copa do Mundo para o Brasil e sobre os verdadeiros conteúdos envolvendo a sanção da ONU contra o Irã? Poderia eu alterar algum dos rumos da Humanidade pelo fato de me manter ligado nos fatos e nos factóides, resistindo a me tornar um agnus sistemi no jeito que os Conquistadores pensam ser os cristãos? E de que me adianta ser cristão se o demônio é o atual governador geral do planeta e não deixa qualquer brecha para qualquer atitude saneadora?”. Enter.
Maria considera a fala de Manoel enquanto com um olho estuda textos pedagógicos e com outro enxerga no éter as imagens construídas pela digressão filosófica de seu apaixonado marido. Gato no colo ronronando sob afago suave da dona, outra mão mantendo o livro aberto, Maria, desde agora também nossa heroína, vê desfilarem diante de seus olhos a imagem respeitabilíssima do presidente do Irã, que considerou algo para ser jogado no lixo o posicionamento da central de acoxambramento dos desmandos e atos infames dos Conquistadores do Mundo, vulgarmente chamada de ONU. E Manoel lê em voz alta para sua amada o texto da Folha que reporta a pendenga entre o sempre ignóbil tio Sam e o Islã: “Ouça bem, ó Maria: ‘O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, manifestou apoio à posição de seu colega iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, sobre as novas sanções impostas pelo Conselho de Segurança da ONU ao Irã, e as rejeitou porque, segundo ambos, não valem um centavo’. E tu acreditas na posição política desse Obama, que já subiu as escadarias da Casa Branca fantasiado de títere dos senhores do mundo? Pois tem mais: o Chávez, homem e estadista de verdade, rebateu positivamente daqui as palavras do colega: ‘Disse-o bem, caramba! Não valem um centavo!, declarou Chávez, principal aliado de Teerã na América do Sul, após a confirmação das novas sanções impostas à República Islâmica nesta quarta-feira’ –, diga-se de passagem, sem medo de errar, sanções de opressores, de corsários, de genocidas, de bárbaros!”, completa Manoel, bufando de entusiasmo político, e Maria se contamina desse teor, semblante tomado de alegria serena e elegantemente contida. Enter.
Na TV, a bagunça intervencionista de sempre: misturam esse impasse com Copa do Mundo e com assuntos completamente irrelevantes para nossas vidas. Tem modelos anoréxicas desfilando parecendo umas loucas de pedra cobertas de panos esdrúxulos e ridículos; tem artistas nuas, seminuas e sorridentes enchendo linguiça nos espaços que seriam dedicados a coisas construtivas; tem páginas inteiras de anúncios exibindo uns seres estranhos, que a gente não vê por aí, e tome carrões vários, mil modelos sendo enfiados goela abaixo dos viciados em consumo, tem importados e supermarcas glamurizadas não como objetos nem mesmo sonhos de consumo, mas como divindades a serem alcançadas; e tem titica, titica, titica, e nada muda nada, mas tudo é articulado para parecer que algo acontece. É que tudo é feito para que tudo continue na mesma, sempre. E o pobre Brasil se enfeita estupidamente de bandeiras e bandeirolas, ninguém está envolvido senão pelo marketing da competição, completamente manipulada e contaminada de componentes espúrios, e a turma só pensa em escapar um pouco da mesmice massacrante de um cotidiano perverso e vazio de perspectivas para se agarrar ao obaoba da Copa tentando se refugiar na alienação e na busca atarantada e azumbizada de algum sentido nesta vida. Na verdade, existe um abismo incomensurável entre a seleção como elenco e a torcida “brasileira” como tal. Mas a turma insiste em balir, mugir e zurrar, para não perder a inserção nessa besteirada, que, para eles, esses deserdados de cultura, de instrução, de identidade, de nação, de país e de pátria, mantém acesa a chama da “vida”. “Que vida é essa, ó pá??”, considera Manoel contemplando essa massamorda pra otários. Enter.
Pois as coisas não são mais as mesmas. Manoel retrocede no tempo: “Quando me lembro, ó Maria, de que eu era menino de 13 anos, e o Brasil disputava a Copa de 1958, extasiando o mundo com um futebol arte até hoje inexcedível, e que a partir de certo momento todos começaram a se empolgar com o Brasil lá no Porto, e que isso virou febre e que todos acorreram às ruas quando da conquista do campeonato, e que a população inteira do Porto se juntou diante dos aparelhos de rádio nos bares para torcer pela pátria irmã na final contra a Suécia, me arrepiam todos os pelos dos pés à cabeça! Naquele tempo os jogadores eram gente envolvida com valores nacionais, eram brasileiros de coração, não eram bonecos globais, gente mercenarizada, então era o país representado por seus filhos legítimos, que jogavam com amor e alegria!”, exulta um Manoel emocionado com as lembranças que de sua infância irrompem agora, e que seriam, junto com a descoberta de Tom Jobim e João Gilberto, os pais da Bossa Nova, que desabrochou no mesmo ano de 1958, os dois motivos que fizeram dele um portuguès apaixonado pela Terra das Palmeiras. Enter final.
“E hoje vemos uma mobilização falsa, postiça, uma patacoada em que não só os brasileiros, mas também o pessoal da Santa Terrinha, boceja de desinteresse ante uma apenas manifestação artificial de entusiasmo e envolvimento. Tanto mais distantes estão os brasileiros do que seria sentimento nacional, tanto maior é a presença surrealista da “bandeira” nesses festejos falseados! Enquanto isso, cresce a conspiração para o golpe contra o Irã, e todos estão bovinizados com essa Copa fajuta, todos se preferem otarizados, mal conseguindo sequer sorrir de forma legítima, torcer de forma sincera, apenas tudo são reflexos de um passado perdido e que não voltará jamais, minha linda!”, desabafa Manoel para sua deusa, que o acolhe com um misto e amor e compaixão, certa de que jamais encontrará amor assim, como ela verificou nos versos de Saint James Infirmary: “But you’ll never find a sweet man like me!”, e Maria abraça seu marido apaixonado, dos olhos de quem descem duas lágrimas furtivas. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 794 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 315 dias...