quinta-feira, 29 de julho de 2010

Manoel, palmadas e pátrio poder

Frederico Mendonça de Oliveira

“Ó Maria, a que ponto chegaremos?? Agora vem essa história de pais não poderem mais dar palmadas em filhos?? Quem está impondo isso, e com que direito se penetra na vida da família interferindo no pátrio poder através de lei ou do diabo que seja???”, questiona Manoel em proposta de debate familiar com sua linda Maria, que sorri com certa amargura diante do disparate que se agiganta na vida do arraial, do estado e do País, quiçá do mundo. “Veja bem, ó linda, eu apanhei como boi ladrão, e era mesmo meio que um boi ladrão! Se por um lado minha mãe teve algum sossego porque vivi distante da molecada de rua, aquele monte de ignorantes insensíveis e grosseiros, por outro fiz das minhas – e que criança não faz? – e levei dela muita pancada, quase sempre muito mais do que merecia. Mas sempre entendi que isso era a vida em família, e as surras que levei não me mataram, não aleijaram nem me tiraram de meu rumo! Hoje sou o que fiz de mim, e minha mãe, se errou, não me desencaminhou. Ela dizia que ‘pé de galinha não mata pinto’, e eis-me aqui inteirito!”. Maria teve mais amor com os filhos que a mãe de Manoel, mas os tempos já eram outros. Manoel, por sua vez, só bateu num filho uma vez, e foi só um tapa de revolta no ombro de um filho que dera uma paulada na cabeça do irmão. E eis que a questão cai na boca do povo e isso dessa intervenção no seio da família gera alguma resistência no grosso da população ligada no assunto. “Quanta loucura, ó Maria! Quem serão os que farão vigorar a ‘lei antitapa’, quem serão os guardiães da integridade da infância neste país estraçalhado??”, pergunta-se divertido e em voz alta, nosso herói, enquanto Maria adianta o almoço, que já se faz desejável pelos aromas da cozinha-amor da deusa de nosso herói. E o dia já vai em sol a pino, e a lucidez vai sendo trabalhada no reduto do casal. Enter.
“A maioria dos brasileiros já apanhou dos pais, já bateu nos filhos e é contra o projeto de lei do governo federal que proíbe palmadas, beliscões e castigos físicos em crianças, conforme pesquisa feita pelo Datafolha, publicada nesta segunda-feira (26)”, estampou a Folha, e o ceticismo de Manoel ganha ares de ironia ferina, sob o olhar aquilino de Maria. “Se esses engravatados que brandem o ridículo Estatuto da Criança e do Adolescente tivessem um mínimo de integridade, se esquivariam desse mico, envergonhados com o painel de horror que avassala a infância e a adolescência no Brasil! Se houvesse um mínimo de respeito por crianças e jovens no mafuá da Pindorama, a Xuxa e quejandos não teriam deformado gerações, e a Globo e a TV aberta não teriam agido soltas devastando mentes como fizeram! Como coibir suposta violência no seio da família se esse mesmo seio é invadido por um verdadeiro horror diariamente, uma programação destinada a público infantojuvenil que agride fundo pela violência que exibe, e, pior, pela violência que inocula nas mentes em formação! Quem são esses ‘legisladores’, que parece não enxergarem a tragédia social que esmaga as crianças os jovens de hoje e ficam aí com essa escrotidão abaitolada de regular até o ânimo de pais no direito de aplicação do corretivo?”, argumenta brilhantemente nosso herói, enquanto Maria conduz os aromas que precedem o almoço. Enter.
No passado remoto, a coisa familiar era rigorosa, feia, havia até o direito de pais matarem filhos que nascessem com defeito. Havia a coisa de vender os filhos, de submetê-los aos interesses e necessidades da família. “Com o evoluir dos costumes, o rigor da jurisdição paterna foi pouco a pouco arrefecendo. E, a partir do século II, se vislumbrou substituir a atrocidade por piedade. E o filius famílias passou a gozar de relativa autonomia como a participação nos comícios (ius suffragii)”. Se a pretendida civilização desaguou em barbárie, que é o que vivemos hoje, por que perder tempo cuidando de um aspecto ínfimo na vida coletiva e social enquanto graves e irremediáveis mazelas se agigantam devastando crianças e jovens? “E a mortalidade infantil, por que esses sudras não a proíbem nesse país-lugar?? E o envolvimento de crianças e adolescentes com o tráfico e com o crime organizado, não será isso passível de proibição? E os pais que ignoram e/ou abandonam seus filhos negando-lhes assistência e amor e deixando-os a critério de Deus ou do diabo, será justo que fiquem aí lampeiros enquanto os que se preocupam com usar normal e adequadamente a autoridade encartando castigos físicos passam a ser enquadrados por ‘prática de violência’?? Que sentido teria o ditado Qui parcit virga odit filium, que significa: ‘os que moderam na vara (de marmelo, digamos, como no passado não remoto) odeiam os filhos’, é por aí; e que dizer das equivalentes expressões em inglês, “Who spareth the rod hateth his child” ou “Spare de rod and spoil the child”, que mostram os mesmos valores? Tudo isso é cascata? E os animais, nossos irmãos mais atrasados, não sabem instintivamente educar seus filhotes incluindo corretivos físicos?”, e nosso herói lembra um boletim com o título “Como criar um delinquente”, com onze regras sobre como desencaminhar os filhos através de educação demasiadamente concessiva. E lembra de David Mills (Brad Pitt) discutindo com William Sommerset (Morgan Freeman) e dizendo: “Bater é mais fácil que educar”, naqueles momentos decisivos de Seven. Enter.
“Porra, isso é simplista, valeu apenas naquele contexto, dentro daquele papo, depois da pancadaria que foi a perseguição a Johnattan Doe (Kevin Spacey), o serial killer daquele filmaço. Procede sob alguns ângulos, é furado sob outros. Mas a questão é simples tanto quanto absurda: a vigência da proibição vai alterar o quê? A relação intrafamiliar entre pais e filhos? Pois de que adianta isso a partir de considerarmos que muito maior agressão ou violência é o desamor e o massacre televisivo que há décadas esmaga crianças e adolescentes? Desde aquele remoto He Man ainda nos anos 70 até os monstruosos filmes de animação japoneses de hoje, com super heróis enfrentando monstros e arquibandidos fantasiosos, só se vê violência e teratologia imposta às novas gerações, e isso pode. Ora, cínicos cretinos, vão tentar fazer com que seus filhos não ingressem na cultura da corrupção, cafres!”, e Manoel se depura desse enfrentamento social, filosófico e político quando vê chegada a hora de sentar à mesa e degustar o almoço, ao qual ele ainda conseguiu acrescentar uma costela de vaca na pressão, para incrementar a sentada sagrada do casal à mesa do almoço. Enter final.
“Bem, não poderíamos deixar de citar as palavras do ‘presidente’ a respeito dessa titica, ele é incorrigível: ‘Beliscão do(ó)i pra cacete!’. Fala de capadócio, de bugre. Mas é de lei ouvirmos mais essa, delineia o quadro que se nos apresenta, essa patacoada de preocupação com uma caganifância enquanto o país mergulha na treva da violência irrefreável e da corrupção endêmica. A lei virou um acessório praticamente inútil, só funcionando como tal burocraticamente, e praticamente divorciada em tudo da Justiça. Vamos nos mudar para Pasárgada, ó Maria, ou para o Nepal, o Nepal de que falou meu amigo Fox em 1970!”. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!

Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 823 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 362 dias...