sexta-feira, 28 de maio de 2010

Manoel, bandeiras e “bandeiras” do Brasil

Frederico Mendonça de Oliveira

Diante da ridícula exibição de bandeiras brasileiras em função da copa do mundo de futebol que se aproxima, os objetos vestidos do Sistema já revelam seu envolvimento com essa patarata empetecando suas casas com aquele verdeamareloazulebranco digamos... coisa de otário. Chegam a esticar em fachadas de casas pavilhões imensos, como se estivéssemos em enfrentamento em que valesse nossa honra, que aliás já perdemos de há muito, e não há mais como recuperá-la. E Manoel considera essa palhaçada, típica de bonecos vestidos e de cérebros de frango de granja, e vai conversando com sua linda Maria sobre tal patacoada, que encarta outras, outras ainda, e acaba que vamos parar até na Vila Rica dos tempos da Inconfidência Mineira, depois Conjuração Mineira, hoje não se sabe o quê. E Maria se diverte e até meio que se encanta com ver que a testosterona de seu apaixonado marido ainda sobra para emular conjeturas verticais, como que ereções mentais diante da completa brochada brasilis no que tange a usar o bestunto. Enter.
“Ó Maria, que lamentável é ver o quanto estão cegos os brasileiros de hoje diante de valores políticos, pátrios, institucionais, sociais, até mesmo de símbolos nacionais. Mas, convenhamos, quem pode resistir pensando após anos e anos de Xuxa, Trapalhões, novelas das oito e demais, Sílvio Santos, futebol alienante, quem suporta décadas seguidas desse massacre sem acabar lesado de alguma forma? Porra, água mole em pedra dura... ou, similar a isso: uma mentira dita mil vezes torna-se verdade! Então os brasileiros de hoje são em sua maioria vítimas dessa burrificação, e isso é um butim de guerra, porque existe de fato invasão e destruição interna... incluindo a letal ação real da TV durante esse quase meio século, e isso foi e é bombardeio cerrado, nos despoja de nossos conteúdos e enriquece o inimigo! E a pergunta, ó Maria, é: a quem isso aproveita? Quem é, na verdade, o inimigo?”, e Manoel até se excita com divisar tais valores. Primeiro, a bandeira nacional: “Quem é que tem qualquer noção quanto ao que significa o losango amarelo na horizontal? Ninguém! Ninguém!! O que se divulgou sobre os significados da bandeira é ridículo: ‘o verde de nossas matas – que vão sendo monstruosamente devastadas -, o amarelo de nosso ouro – onde anda esse ouro, foi parar em que mãos? -, o azul de nosso céu’ – que hoje é um céu constrangido por ver o que está sob ele. Lembra-me até Castro Alves: ‘Senhor Deus dos desgraçados/ dizei-me vós, Senhor Deus/Se é verdade ou é mentira/ Tanto horror perante os céus!’... Meu Deus! Pois ensinaram toda essa besteirada na década de 1950! Se já era cascataça então, que dirá hoje, depois de devastada e extinta a nação! E a bandeira ainda fala em ‘ordem e progresso’, quando o País vive plena desordem e pleno retrocesso!” Enter.
“E por falar em lemas disparatados em bandeiras, que dizer do absurdo ‘libertas quae sera tamen’?, que nas escolas ensinam como sendo ‘liberdade ainda que tardia’? É impressionante como engrupem as crianças desde tão longa data e como, depois adultos, prosseguem engrupidos, e só algum privilegiado saca o real significado desse disparate, que vive nas fuças de todos o tempo todo, concretizando a enganação, neste caso uma bela patacoada! Afinal, Virgílio escreveu ‘Libertas quae sera tamen respexit inertem candidior postquam tondenti barba cadebat’, significando: ‘liberdade que, tardia, contudo, me viu já improdutivo, quando, ao fazer a barba, esta já caía branca’. É trecho das Églogas, Virgílio tinha então 25 anos. Pois veja, o que está na equivocada bandeira de Minas é: ‘Liberdade que, tardia, contudo’; se fosse ‘liberdade ainda que tardia, seria ‘Libertam quamquam sera’, pois quamquam é conjunção concessiva, significando embora, ainda que, mesmo que, conquanto. Já tamen é conjunção coordenativa adversativa, e significa contudo. Não faz sentido fora do contexto, ó pá! Será que NINGUÉM ainda viu isso, ó Maria? Será que aqui não existem pensadores, latinistas, gramáticos, gente que grite contra um disparate sesquipedal como este??”, e Maria se concentra nessa porcariada, que ela jamais perceberia não fosse a ação intelectual ininterrupta e incansável de seu apaixonado Manoel. E, interessante, portuguesa de Torres Vedras, Maria se sente envergonhada ao constatar a desbundação tupiniquim, que não enxerga nem mesmo o valor de suas bandeiras... "Que 'bandeira!'", conclui ela. Enter.
E Maria viaja na maionese até sua querida e saudosa “santa terrinha”, onde as bandeiras são sagradas MESMO, e onde todos não só veneram sua bandeira nacional como também sabem EXATAMENTE o que significam seus elementos constitutivos, estandarte cristão na essência, e eis Maria constrangida de ver que ninguém no Brasil entende o seu pavilhão nacional, ninguém nem vê que o dístico positivista vira piada frente à realidade que os brasileiros enfrentam. Enter.
Chega o amigo músico de Manoel, depois de um telefonema de articulação, e a conversa pega fogo: o amigo tem um amigo que peita as autoridades do Arraial das Bagas, e sua/dele trajetória é fumegante: esse homem ímpar entrou com processo contra a chapa vencedora das eleições para o Executivo do município por ter descoberto uma doação de campanha feita por uma entidade que não tem fins lucrativos – portanto impedida de fazer doações dessa natureza, pelo fato de receber dotação federal. No arraial, a coisa foi devidamente escamoteada, foi indeferida a petição. Feito recurso para instância superior, na capital do estado, veio de lá uma “decisão” surrealista: foi constatado o crime eleitoral, mas quem julgou o recurso “entendeu” que “a doação não foi decisiva para o resultado do pleito”, e assim ficou. Feito recurso para a instância máxima, na capital federal, uma ministra falou alto: “determinar o retorno dos autos ao tribunal de origem para que nova decisão seja proferida”. “Cumpra-se a lei, dê-se a sentença!”, ordenou a primeira criatura decente nesse percurso. E agora o amigo do amigo espera a sentença, que demora, demora, e ele já pensa em fazer outra aprontação pública, no nível do que já vinha fazendo, virando um banner humano plantado na porta do fórum denunciando não haver justiça eleitoral no arraial. Foi alvo de processos criminais e até de tentativa de lesão corporal a faca, na porta da Câmara. Enter final.
E agora vemos a cena: Manoel aconselhando o amigo a dizer para o amigo deste que procure meios eficazes, que não se exponha a violências, já que vem sofrendo processos e perseguição, e considere que o corporativismo é um fato monolítico no arraial... “Avisa lá que os brasileiros estão vivendo numa selva, vê se acalmas o homem! Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!...” E ficou assim. E viva Santo Expedito! Oremos. Té mais, babes!
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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Manoel e a civilização terminal

Frederico Mendonça de Oliveira

“Falar sobre crianças sempre foi algo em que a crítica não cabe nem de todo nem de pouco: a tendência é ver os infantes pelo aspecto da esperança, de considerá-los como um bem que Deus nos deu para selar a concretização do futuro... sempre foi assim, pelo menos foi o que sempre vi, ó Maria. Mas parece que estamos inaugurando outra era: os seres lúcidos não podem mais se permitir essa visão idealista que mostra a criança como o agente do porvir melhorado. Sermos de alguma forma vítimas de enganação é uma coisa; enganarmo-nos a nós mesmos é muito diferente!”, conjetura Manoel contemplando a figura helênica, ereta, luminosa mesmo, de sua amada. É que as experiências dos últimos anos feriram profundamente a fé de nosso herói, tamanha a monstruosidade que explodiu bem em suas ventas. Desçamos aos tortuosos e asquerosos meandros em que foi jogado este lusitano que adotou o Brasil como pátria e que hoje se vê abalado por tanta constatação de degenerescência em tudo, tudo, TUDO nesta Pindorama hoje terminal, assolada por um câncer que se agrava a cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo! Enter.
“Impossível não vergar sob uma nostalgia que em certos momentos chega ao âmbito do atroz!”, revela Manoel um tanto emocionado, enquanto a linda Maria prepara alimentos para os gatos, entretida no que faz e ao mesmo tempo atenta em tudo para com seu marido apaixonado. “Como imaginar que poetas tenham sido varridos das mentes e da cultura de um povo para serem criminosa e sordidamente substituídos por seres míseros, bugres cínicos, menestréis da merda e portadores de cloacas sonoras que emitem ganidos lancinantes? Ainda há pouco eu me lembrava da beleza dos poetas portugueses, dos brasileiros, de toda essa beleza que se acumulou ao longo dos séculos e que hoje é preterida monstruosamente em benefício de uma corja de oligóides – nada contra os oligóides: só que estes estão no galho errado! – a quem foi entregue o pódio da canção brasileira há tão pouco tempo ocupada por Tom Jobim! A canção, ó Maria, é a prostituta da música, porque é a que mais facilmente se vende, a que naturalmente tende a se vender! E veja o que se apresenta hoje como canção brasileira – os salteadores do poder no Brasil chamam canção de música, os crápulas –, uma deformidade primária só, parecem crias de pais irmãos, parecem frutos de coito incestuoso, essas formas míseras vomitadas por tipos que apresentam mentalidade no nível de frangos de granja!”, metralha nosso herói para sua Maria, que o ouve assimilando a indignação que ele deixa explodir, e ambos compreendem que, aprisionada essa indignação, infarto e derrame são quase que inevitáveis. “Lembras-te, ó Maria, daquele primeiro 'sucesso' da repulsiva dupla Leandro e Leonardo, dois bugraços musicalmente desprezíveis, rasteiros, e que falava em ‘pegar um avião para a felicidade’, metáfora no patamar da miséria intelectual, compatível com o asco daqueles bigodes maranhenses que então ocupavam a cadeira da mais alta magistratura na Pindorama?”, considera Manoel para se liberar do engulho que o assalta ao contemplar essa regressão maligna que assola todos os brasileiros, saibam disso ou não. Enter.
“Pois hoje vejo crianças e o que me acomete é temor, é desprezo, é desencanto! Não pelos infantes em si, uns joguetes nas mãos dos pais e do Sistema em crime, mas pelo que já fazem deles, pobres diabos em plena deformação, projetos de otários, de corruptos ou de craqueiros!”. E Manoel pensa em António Nobre, poeta que tinha fixação com a morte e que criou estes lindos versos: “Em tudo via a Velha/ Em tudo via a Morte/ um berço que dormia/ era um caixão pra cova/ via a foice no céu/ quando era lua nova”. “Vendo esses pequenos de hoje, ó Maria, não consigo ver senão o que estão fazendo deles e imagino o que os espera: Sistema em crime, eles integrados nisso; corrupção generalizada, eles integrando isso desde meninos; pais negando a si mesmos e ausentes, amebóides, e eles sob essa influência desde que retirados dos úteros das que os gestaram depois de um coito apenas para descarga de tensão fisiológica; degenerescência solta, eles navegando alegres nessa maré! Que se pode esperar desses infelizes?? Poderemos nos enganar diante de uma cena social tão nítida, poderemos ver céu azul e aberto quando estamos sob tenebrosas e ameaçadoras nuvens negras? Pois lamento, ó Maria: o futuro que espera esses pobres é mais cruel do que essa realidade que hoje vivem, mergulhados no cinismo, hipócritas já assumidos, pobres diabos sem caráter desde que começaram a lidar com esta vida. Os traficantes de amanhã sabem que terão clientela maciça e ávida, porque a droga será o sucedâneo terrível do vácuo maligno que muitos, muitos sofrerão como consequência de terem sido até levados ao crime e à corrupção pelas mãos dos próprios pais e das ‘autoridades’, que hoje não são senão lacaios sem pátria, gerenciadores da miséria imposta ao País pelos Conquistadores do Mundo!". Enter.
Vemos os comentários de nosso herói e consideramos o dia a dia: lamentavelmente, temos de encartar a visão crítica desse grande coração sofrido, e não podemos deixar de considerar que hoje temos algo muito pior que a era Xuxa; agora, a deformidade é diretamente induzida pelos próprios pais, que se refugiaram na estupidez assumida e consentida e que na verdade não passam de público estatelado diante de Big Brothers, Sílvios Santos, Gugus e monstruosidades outras; e são tantas!, são incontáveis, a cada dia são mais numerosas e mais massacrantes! Manoel enxerga o que está diante de todos e que todos se negam a ver: a desgraça futura está estampada nas crianças de hoje, seres completamente sem pais, sem pátria, sem parâmetros, sem qualquer capacidade para discernir valores; prisioneiros, desde o nascimento, de um esquema que faz deles zumbis, cínicos, calhordas, hipócritas, fúteis, vazios, imediatistas e completamente reféns de desejos. Que poderemos esperar de uma conjuntura dessas? Enter final.
“É a derrocada fragorosa da Civilização. Quem semeia ventos... mas os cegos não farejam a miséria que plantam e não estão preocupados com o que retornará disso, implacavelmente. Deus não falha, ó Maria, e o cataclismo se aproxima. Uma anti-estética vai esmagando a realidade, e isso é o trovão que anuncia a chegada da tormenta devastadora. Seremos todos envolvidos nesse horror, e não poderá ninguém condenar a ação de ninguém: cabe apenas a Deus e seus auxiliares celestes aplicar as devidas penas aos que estão em débito. Não se pode esperar, outrossim, como disse o Cristo, que árvores más dêem bons frutos, nem que mau plantio dê boa colheita. Colheremos o que plantamos, e se nossos irmãos se desencaminham como vemos, não seremos nós os que os julgarão. Não tentamos impedi-los de se destruir e de destruir o mundo, porque nada os demove. São zumbis andróides conduzindo sua própria desventura e promovendo a destruição geral, a começar por destruir seus próprios filhos!”. E Manoel contempla a pracita hetera, cheia de infantes deformados pelos próprios pais e observa a cara de paisagem cínica dos que puseram seus infelizes desde cedo para coonestar corrupção. E pede a Deus que ilumine esses seres desencaminhados, e que tenha dó dessas infelizes crianças. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!

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sexta-feira, 14 de maio de 2010

Manoel e o assédio do mundo em colapso

Frederico Mendonça de Oliveira

“Olhe, minha deusa, acho que não entro mais em loja nenhuma!”, reflete em voz alta Manoel pra sua doce Maria, que organiza roupas limpas no armário do quarto do casal. “O mercado sabe muito bem que não tem mais aquela força de dez anos: agora a turma se virou para outros interesses definidos, como ter carro e eletroeletrônicos, e o resto ficou secundário... ou coisa parecida: afinal, gado obedece ao pastor, mas também tem suas escolhas, inclusive ocorrendo estouros e coisas que tais!”, considera nosso herói, fatigado de ter de varar um verdadeiro corredor polonês entre bugres e bugras, todos azumbizados, todos mesmerizados pelo ópio do Sistema. “Pobres coitados, sabe Deus quando superarão isso!... mas é preciso enfrentar para superar, senão o aperfeiçoamento não ocorre”, vai Manoel considerando, em pantomima de admirável perfeição com a tarefa de sua Maria, que organiza os ícones do lar purificando o espaço com sua diligente tarefa doméstica. De repente, Maria recebe com alegria o gatinho mais novo, já adolescente até, e ele pula sobre a cama e se dirige para confraternizar carinhosamente com ela. Manoel olha com ternura para o carinho entre os dois, seu coração se adocica. Enter.
Fora dura a manhã, cheia de tropeços estéticos, cheia de momentos embaraçosos. Os novos seres humanos, os que embarcaram de cabeça na política perversa da nova etapa de dominação, transformaram o que chamaríamos de “cenário social e humano” em uma ininterrupta visão de decadência, uma cena patética em seus conteúdos. As roupas dos objetos do Sistema que passam por pessoas já denotam e conotam valores em vertiginosa decomposição. A desordem visual envolvendo esses zumbis gera um desmantelamento no conjunto, e nós introjetamos esses conteúdos de forma inevitável, pois eles se fixam em nossas retinas-memória, o que significa dizer que elas se incorporaram a nossa experiência pessoal. Não há como deletar isso, mesmo que ponhamos de lado na mente e “esqueçamos”. “Não esqueceremos jamais!”, sentencia Manoel, cenho levemente franzido. “Mesmo que não retornem à ribalta da memória de cenas, estarão em nós para sempre, nos bastidores, nas coxias, nos refolhos. Então é claro que devemos nos preservar de absorver essas cenas, primeiro porque de nada valem, já que servem apenas a quem as protagoniza, prejudicando-as; segundo, porque são matéria inútil para nossa bagagem existencial, aumentando quantidade sem nada acrescentar em qualidade; aliás, constituindo-se exclusivamente em peso prejudicial para nossa jornada. Pois é difícil: esses “conteúdos” nos assaltam, como os sacos de plástico na gaveta da geladeira, que parece quererem se agarrar a nossas mãos, ‘lutando’ por não serem largados. E a isso acrescente-se a pantomima das ruas e do comércio, onde mecanicamente se dizem e se fazem coisas de maneira totalmente irracional, estabelecendo uma assimetria onerosa, cansativa, da qual temos de fugir de forma sistemática e ininterrupta”. Manoel interrompe suas digressões e se envolve docemente com sua Maria e o gato, ambos formando uma cena que valeria uma foto e mesmo uma escultura. E um sossego desce entre os três, enquanto a cachorrada vil da vizinhança deformada late em desespero e ansiedade. Enter.
“Zebras e mandruvás nas ruas e nas lojas, aquelas roupas estúpidas listradas e fragmentadoras, em preto e branco ou – normalmente – estupidamente coloridas e os que as envergam o fazem com aparente orgulho, crentes de que estão fazendo bela figura. Nisso, eis que, fugidos das lojas em que somos vergastados frontalmente pelo ciniquíssimo ‘Posso ajudar em alguma coisa?’, agora somos também espetados pelas caixas de supermercados, onde ainda encontrávamos alguma liberdade, com um inusitado e estupidíssimo ‘Quer mais alguma coisa?’!! Ora, se percorremos o espaço do supermercado e selecionamos o que queríamos, o que quereríamos mais depois de paga a despesa? Só se fosse vermos os... os... ora, deixemos pra lá!”, rosna Manoel com um meio sorriso malicioso no semblante e sob o olhar compreensivo de sua Maria, que sabe muito bem da veia humorística do marido e do teor de sua/dele testosterona... Enter.
“Quer que eu embrulho?”, pergunta maquinalmente a atendente de uma loja de babilaques onde nosso herói adquiriu um porta-níqueis. Primeiro: embrulhar pra quê? Se vai logo ser posto em uso, nada de embrulhar, né? “E não é ‘quer que eu EMBRULHO’, bugra de Deus! Só faltava você querer que eu pedisse: ‘Embrulha pra EU!, como dizem os aldeães nestas montanhas de Baphomet”, e Manoel sente a lancinante fisgada da nostalgia ao ver o idioma sendo estraçalhado pela proletarização petista e ao lembrar de tempos em que só os braçais mais primários bostejavam o dialeto dos desassistidos. “Se o Português de hoje desce ao patamar da sucata e da miséria falada e escrita, que dizer do que terá sido feito de todos aqueles que construíram nossa Literatura, nosso vernáculo, nossa Língua Portuguesa, hoje apenas um programinha daquele Cipro, que vivia dando pipetadas em detalhezinhos, contagoteando caganifâncias que servem como um dedal d’água num oceano de merda?”, e nosso herói ainda ouve a mulher baranga, também sendo atendida, na caixa ao lado, soltar ao celular um “Eu já pedi pra ele VIM, ele deve estar chegando.” “Bem”, considera Manoel, “se essa pobre sabe escrever – claro, segurando o lápis ou a caneta esferográfica com horrenda deformação de pega, os dedos como que se esmagando uns contra os outros e contra o torturante cilindro de escrita –, talvez escreva, neste caso, VIR, mas eis aí algo que eu gostaria de verificar!, um bilhete saído desta mente e destas mãos!...”, cogita Manoel consigo, em resignada consideração da diacronia miserabilizada. Enter final.
“Meu amigo e mestre Marco Antônio Cavalcanti me mandou raridades, já estou agarrado a uma delas, A Letra Escarlate, de Nathanael Howthorne. Veio além disso um Dom Quixote em Espanhol, de editora argentina que imprimia no México. E veio o poema, o sempre contundente poema, este pelos 65 de nosso herói. Para este irmão querido Manoel fez um haicai: “Deus, com devoção/ prepara lento um romance/ em teu coração”, e quem seria Manoel, no dizer dele mesmo, para fazer um poema para um gigante como Marco Antônio? “Saiu o haicaizinho, e olhe lá!”, e lá vai Manoel afundar as ventas no romance de Hardy. Maria, a seu lado, lê A Carne, do Júlio Ribeiro, volta e meia torcendo o pequeno e lindo nariz – que fica mais lindo ainda no inverno, quando o frio avermelha sua ponta. E Manoel não resiste, e tome beijá-lo, em êxtase, deixando Maria meio tonta com tamanho afagamento... E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!

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sexta-feira, 7 de maio de 2010

Manoel, mandruvás, zebras e o “posso ajudar?”

Frederico Mendonça de Oliveira

“Diabos me carreguem, mas não há mais como entender e como dar rumo para este mundo, ó Maria!”, comenta o perplexo Manoel com sua concentrada Maria. Nosso herói acabava de chegar do centro, onde fora com o amigo resolver as pinóias da tarefa demissional e da aposentadoria dele. Pois o percurso pelo arraial, por mais que se alcance alguma abstração, sempre pesa – no mínimo! – do ponto de vista estético: a “paisagem humana” petista, ulterior consumação de uma visão de degenerescência em curso desde meados da década de 80, quando a MPB foi preterida em função da introdução da lambada, do agrobrega e do pagode pasteurizado, se instalou de forma opressiva, como se fora uma invasão de hordas de bárbaros, aparentemente inofensivos, mas indiscutivelmente temíveis. E nosso herói queda avaliando os conteúdos do “cenário social”, e eis que uma constatação preocupante o invade: a da irreversibilidade desse quadro, a partir inclusive de considerar a irreversibilidade da coisa política, visível mas na verdade escancaradamente dissociada do compromisso com o social. “Se a política virou as costas para o que seria uma intervenção benéfica no social, a derrocada é obrigatória!”, reflete entre dentes este pensador exilado de todo, mas assumido mais que nunca como pensador. Enter.
“Ó Maria, já começa tudo ao vermos a estética manifestada nas ruas. Quando estávamos no Rio da década de 80, o emporcalhamento dos muros, paredes ou qualquer espaço onde coubesse uma pichação era a imagem de um caos, de um desarranjo visível através de um discurso enigmático, indecifrável mas desgraçadamente presente de maneira sufocante, torturante. Era o grito dos excluídos lançado nas paredes, nos muros, nos monumentos arquitetônicos, e tudo não passava de uma desesperada tentativa de se fazer visto por todos, já que estava determinado pelo Estado, naquela ditadura amolecada, que aqueles seres jamais seriam ouvidos. A exclusão era algo imposto, implacável, e a macacada revidava usando paredes e arquitetura em geral como suporte para seu protesto, escolhendo a violência visual como discurso. Puta merda!, falei bonito!”, considera alegremente Manoel vendo que sua linda Maria até estampava nos olhos e no canto da boca um sorriso divertido de aprovação. “Pois é: se naqueles tempos ficávamos penalizados e até mortificados com enfrentar aquele emporcalhamento do espaço social aberto, e se a pichação parece que hoje caiu de moda, eis que agora a coisa parece que virou. As pessoas andam emporcalhando é a si mesmas, começando com essa mania estúpida de tatuagem, passando pela bizarria da auto tortura dos piercings, desembocando no mau gosto do que antes era um vestir-se, apenas. Andamos pelas ruas e entramos em supermercados e parece que estamos em outra dimensão, como se tivéssemos o tamanho de insetos, e nos vemos entre mandruvás, aquelas lagartas providas de anéis coloridos, aliás para espantar predadores. E se saímos dessa dimensão e voltamos ao tamanho normal, veja só, de repente nos vemos entre zebras, como se integrássemos a vida animal nas planícies africanas: nesse caso, seríamos gnus ou impalas, pois de repente nos vemos misturados a zebras...”, conclui com jeito crítico um tanto pra comédia nosso herói, diante do semblante receptivo de sua Maria. Enter.
Nosso herói apenas considera a maneira bisonha como os objetos vestidos hoje se cobrem de roupas. Uns parecem espantalhos, se vestem de maneira tal que lembram os palhaços cuja extravagância no vestir faziam rir platéias nos circos do passado. Hoje não há mais circos como outrora, mas as ruas e espaços de convivência das comunidades viraram picadeiros coalhados de palhaços. Outros optam pelas camisas listradas, algumas em cores berrantes, outras apenas “fatiando” quem as enverga de maneira a produzir certo movimento visual, que as faz mais visíveis. Manoel lembra o velório do último coronel do arraial, que morreu de indigestão. O corpo estava colocado no altar, os pés voltados para o fundo do templo. A câmera grande angular estava a uns metro e meio de altura, captando toda a nave apinhada de gente e, em ângulo de grua, fazendo um grande plano de conjunto, pegava a imagem desde o altar até a porta do templo, lá ao fundo. Foi quando entrou um arraialeiro bem conhecido, grandalhão e bobalhão, e veio de lá da porta se chegando em direção ao caixão em meio ao poviléu. A camisa dele era listrada, e de uma extravagância tal de cores e dimensões que roubou totalmente a cena do tão badalado velório. “É mole?”, perguntava Manoel pra sua amada, que tinha os olhos pestanudos espetados no ar relembrando em riso suave as imagens trazidas por nosso herói. Enter.
“E esta mania de virar zebras, onde vai parar isso? Eles se acham muares, asininos, e por isso assumem esse visual? Ou será que estão é metaforizando serem presidiários do Sistema, envergando roupas de listras horizontais pretas e brancas?”, e a linda Maria se ri gostosamente, embora jamais deixando sua contenção de nobreza, elegância natural dela. “Parecem doidos, como que desejando virar um troço, como se a camisa devesse ser a identidade deles, que parece terem assumido a perda da identidade facial!”, farpeia nosso herói, e Maria fecha a fisionomia, como que aprofundando uma compreensão carregada de piedade e preocupação. Enter final.
“E tudo rima, ó minha linda: se entramos num diabo de loja, lá vem de assalto a inconveniente pergunta: “Posso ajudar em alguma coisa?”, como se não soubéssemos ler, não soubéssemos escolher, não soubéssemos o que queremos, como se fôssemos ninguém. Mas, ó pá, pensando bem, os seres que entram hoje em lojas são, em sua grande maioria, consumidores imbecilizados, e o que interessa é o ato, que é intensificado pela ação do vendedor, por sua vez ávido em ganhar o seu...”. E toca a campainha, e lá se vai nosso herói receber o amigo já esperado. E Maria volta a seus fazeres domésticos pensativa, com os gatos a lhe roçarem as pernas roliças e harmônicas. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 758 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há muitos meses.