Frederico Mendonça de Oliveira
Manoel é amigo do cara que foi o primeiro guitarrista do Raul Seixas. Como estamos a 20 anos do momento em que o Maluco Beleza nos deixou a ver Tchans, Bondes do Tigrão, Tiriricas, Créus, e a mídia voraz vai abocanhando (qualquer coisa serve para desviar a atenção da podridão que explode no Congresso e livrar Sarney do linchamento que tanto merece) e arrecadando (até depois de morto o Raul dá lucro aos chacais da segunda mais antiga profissão do mundo) em cima de homenagens, documentários, livros e tributos às centenas, vale parar e fazer uma reflexão entre um arroto, um peido e uma escarrada emitidos quando pensamos – o tempo todo, aliás – na cloaca parlamentar brasileira. E foi nesta pausa para meditação que Manoel topou com o velho amigo, que tocava no palco acompanhando o Raul em sua primeira temporada enquanto nosso herói tudo testemunhava da platéia, presente quase todos os dias àquele memorável show de estréia no Teatro Tereza Rachel, no Rio já conflagrado naquele já distante 1973. E foi aquilo de dois velhos amigos do peito trombando em meio à putaria instalada também nos mais remotos arraiais deste lugar degringolado chamado Brasil. Enter.
Irmanados na mesma visão crítica pela conjunta experiência haurida em anos de percurso comum, os dois se deixaram apenas ficar juntos, o amigo de braço apoiado no ombro firme de Manoel, e não era preciso praticamente dizer nada. O amigo perguntou pela Maria, mulher amada e sempre musa de Manoel, e a conversa, tácita, telepática, só foi interrompida quando o amigo informou que estaria tocando em homenagem ao Raul – não em homenagem aos 20 anos da morte do Raul, como dizem os trouxas tipo “pode vim”: não vá ninguém homenagear data de falecimento...- no exato dia em que se somam 20 anos do desaparecimento do cara. “Porra, não quero perder essa!’, exclamou entusiasmado Manoel, considerando como seria estar na platéia dessa homenagem e voltando no tempo vendo o amigo ainda de rabo-de-cavalo , cheirado e dando tudo em sua Gibson garance. O amigo ainda relatou ter composto um rock em homenagem ao finado autor de Ouro de Tolo. E esse rock alude ao ilícito que corrompeu a vida na vizinhança em que os dois se inserem, essa história de uma torpeza que trouxe com ela uma série de torpezas mais graves e abjetas ainda. Manoel, sabedor da capacidade musical e poética do velho amigo, ficou vermelho de entusiasmo, pensando consigo: “Carilha!, esse rock deve ser é bom, imagine-se o que poderá sair do coração esmagado desse músico sesquipedal!”, e os dois se despediram com forte e sentido abraço fraterno, pois o amigo estava a caminho de casa para receber a Globo, que o iria entrevistar em função do show de homenagem etc. Enter.
Pois tudo rolou, inclusive a matéria na TV, que, no conceito exigente de Manoel, deixou um gostinho de quero mais, na verdade ficando a dever ao músico e ao público – pra variar. E Manoel se divertiu muito considerando a dor-de-cotovelo, a inveja e o desapontamento dos vizinhos escrotos, covarde e sujamente organizados contra seu amigo, quando viram a viatura de externa da Globo parada na porta da casa por mais de duas horas (e tome acender e apagar refletores dentro da sala da frente)... E, como a casa do amigo está sendo observada por câmara colocada em casa de um dos moradores aliciados pelo autor intelectual do crime, esse registro deve ter causado calafrios entre os bugres estúpidos partidários do ilícito, que devem ter imaginado que vem bomba pela frente, pois fica reinstaurada no Arraial a superioridade do amigo, em termos de prestígio, frente à alcatéia que o assedia com ódio e inveja, e à população do arraial em geral, verdadeira súcia de conformistas materialistas hipócritas, senão cínicos.. Enter.
E rolou o evento, em meio a verdadeiro furor de produção, ensaios, gravação de reportagem da Globo, e a noite ferveu de gente, um evento explosivo, e Manoel no meio com sua linda Maria – levemente maquiada ela causa deslumbramento... – exibindo seu lindo violão e ajudando com eficiência as meninas ligadas ao amigo de Manoel e ao próprio casal. E nosso herói via com os olhos úmidos o amigo já sessentão, hoje tocando sentado, com uma SG de luthier (o admirável Ronay, de Americana, SP), guitarra furiosa, uma vedete pra rock, e em torno do consagrado guitarrista que ele é mais de mil jovens, a começar pelos músicos tocando no palco, todos alunos dele, com exceção do admirável baterista.convidado para compor a homenagem. Enter final.
E a noite foi apoteótica! O filho do amigo, cantor já admirado por conhecedores e leigos, cantou Cachorro Urubu, linda faixa do Raul (procure isso na internet, possível leitor) na verdade homenageando o cacique Touro Sentado, sioux que declarou guerra aos EUA e teve sua tribo exterminada pela famigerada 7ª Cavalaria, comandada pelo genocida general Custer. A namorada desse filho do amigo, cantora, baixista e violonista, dotada de voz deslumbrante, cantou lindamente Trem das Sete e causou comoção geral cantando, junto com a voz unânime e fervorosa da platéia de jovens, Maluco Beleza. E Manoel e Maria ouviram e presenciaram, abraçados e de cabeças juntas, vertendo lágrimas de emoção, Ouro de Tolo, obra prima do Raul, que parecia dirigida à corja de bugres aliciada pelo autor intelectual do ilícito, quando fala: “É você se olhar no espelho/ se sentir humano, ridículo, limitado e que só usa dez por cento de sua cabeça, animal! /E você pensar que é doutor, padre ou policial e que está contribuindo com sua parte para este belo quadro social”, e nosso herói e sua amada se apertaram mais ainda quando ouviram “Eu é que não me sento no trono de um apartamento/ com a boca escancarada cheia de dentes/ esperando a morte chegar!”, e olhavam para o amigo músico, homem de coração livre, homem livre de desejos, trabalhando com energia e concentração a turma de pupilos no palco, e Manoel se emocionava com a figura que vira há 36 anos dando suporte ao salto do Raul. Que, na verdade, estava ali, naquele evento, porque estavam reunidos mais de mil em seu nome. O resto... depois eu conto. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
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