Frederico Mendonça de Oliveira
“Olhe, minha deusa, acho que não entro mais em loja nenhuma!”, reflete em voz alta Manoel pra sua doce Maria, que organiza roupas limpas no armário do quarto do casal. “O mercado sabe muito bem que não tem mais aquela força de dez anos: agora a turma se virou para outros interesses definidos, como ter carro e eletroeletrônicos, e o resto ficou secundário... ou coisa parecida: afinal, gado obedece ao pastor, mas também tem suas escolhas, inclusive ocorrendo estouros e coisas que tais!”, considera nosso herói, fatigado de ter de varar um verdadeiro corredor polonês entre bugres e bugras, todos azumbizados, todos mesmerizados pelo ópio do Sistema. “Pobres coitados, sabe Deus quando superarão isso!... mas é preciso enfrentar para superar, senão o aperfeiçoamento não ocorre”, vai Manoel considerando, em pantomima de admirável perfeição com a tarefa de sua Maria, que organiza os ícones do lar purificando o espaço com sua diligente tarefa doméstica. De repente, Maria recebe com alegria o gatinho mais novo, já adolescente até, e ele pula sobre a cama e se dirige para confraternizar carinhosamente com ela. Manoel olha com ternura para o carinho entre os dois, seu coração se adocica. Enter.
Fora dura a manhã, cheia de tropeços estéticos, cheia de momentos embaraçosos. Os novos seres humanos, os que embarcaram de cabeça na política perversa da nova etapa de dominação, transformaram o que chamaríamos de “cenário social e humano” em uma ininterrupta visão de decadência, uma cena patética em seus conteúdos. As roupas dos objetos do Sistema que passam por pessoas já denotam e conotam valores em vertiginosa decomposição. A desordem visual envolvendo esses zumbis gera um desmantelamento no conjunto, e nós introjetamos esses conteúdos de forma inevitável, pois eles se fixam em nossas retinas-memória, o que significa dizer que elas se incorporaram a nossa experiência pessoal. Não há como deletar isso, mesmo que ponhamos de lado na mente e “esqueçamos”. “Não esqueceremos jamais!”, sentencia Manoel, cenho levemente franzido. “Mesmo que não retornem à ribalta da memória de cenas, estarão em nós para sempre, nos bastidores, nas coxias, nos refolhos. Então é claro que devemos nos preservar de absorver essas cenas, primeiro porque de nada valem, já que servem apenas a quem as protagoniza, prejudicando-as; segundo, porque são matéria inútil para nossa bagagem existencial, aumentando quantidade sem nada acrescentar em qualidade; aliás, constituindo-se exclusivamente em peso prejudicial para nossa jornada. Pois é difícil: esses “conteúdos” nos assaltam, como os sacos de plástico na gaveta da geladeira, que parece quererem se agarrar a nossas mãos, ‘lutando’ por não serem largados. E a isso acrescente-se a pantomima das ruas e do comércio, onde mecanicamente se dizem e se fazem coisas de maneira totalmente irracional, estabelecendo uma assimetria onerosa, cansativa, da qual temos de fugir de forma sistemática e ininterrupta”. Manoel interrompe suas digressões e se envolve docemente com sua Maria e o gato, ambos formando uma cena que valeria uma foto e mesmo uma escultura. E um sossego desce entre os três, enquanto a cachorrada vil da vizinhança deformada late em desespero e ansiedade. Enter.
“Zebras e mandruvás nas ruas e nas lojas, aquelas roupas estúpidas listradas e fragmentadoras, em preto e branco ou – normalmente – estupidamente coloridas e os que as envergam o fazem com aparente orgulho, crentes de que estão fazendo bela figura. Nisso, eis que, fugidos das lojas em que somos vergastados frontalmente pelo ciniquíssimo ‘Posso ajudar em alguma coisa?’, agora somos também espetados pelas caixas de supermercados, onde ainda encontrávamos alguma liberdade, com um inusitado e estupidíssimo ‘Quer mais alguma coisa?’!! Ora, se percorremos o espaço do supermercado e selecionamos o que queríamos, o que quereríamos mais depois de paga a despesa? Só se fosse vermos os... os... ora, deixemos pra lá!”, rosna Manoel com um meio sorriso malicioso no semblante e sob o olhar compreensivo de sua Maria, que sabe muito bem da veia humorística do marido e do teor de sua/dele testosterona... Enter.
“Quer que eu embrulho?”, pergunta maquinalmente a atendente de uma loja de babilaques onde nosso herói adquiriu um porta-níqueis. Primeiro: embrulhar pra quê? Se vai logo ser posto em uso, nada de embrulhar, né? “E não é ‘quer que eu EMBRULHO’, bugra de Deus! Só faltava você querer que eu pedisse: ‘Embrulha pra EU!, como dizem os aldeães nestas montanhas de Baphomet”, e Manoel sente a lancinante fisgada da nostalgia ao ver o idioma sendo estraçalhado pela proletarização petista e ao lembrar de tempos em que só os braçais mais primários bostejavam o dialeto dos desassistidos. “Se o Português de hoje desce ao patamar da sucata e da miséria falada e escrita, que dizer do que terá sido feito de todos aqueles que construíram nossa Literatura, nosso vernáculo, nossa Língua Portuguesa, hoje apenas um programinha daquele Cipro, que vivia dando pipetadas em detalhezinhos, contagoteando caganifâncias que servem como um dedal d’água num oceano de merda?”, e nosso herói ainda ouve a mulher baranga, também sendo atendida, na caixa ao lado, soltar ao celular um “Eu já pedi pra ele VIM, ele deve estar chegando.” “Bem”, considera Manoel, “se essa pobre sabe escrever – claro, segurando o lápis ou a caneta esferográfica com horrenda deformação de pega, os dedos como que se esmagando uns contra os outros e contra o torturante cilindro de escrita –, talvez escreva, neste caso, VIR, mas eis aí algo que eu gostaria de verificar!, um bilhete saído desta mente e destas mãos!...”, cogita Manoel consigo, em resignada consideração da diacronia miserabilizada. Enter final.
“Meu amigo e mestre Marco Antônio Cavalcanti me mandou raridades, já estou agarrado a uma delas, A Letra Escarlate, de Nathanael Howthorne. Veio além disso um Dom Quixote em Espanhol, de editora argentina que imprimia no México. E veio o poema, o sempre contundente poema, este pelos 65 de nosso herói. Para este irmão querido Manoel fez um haicai: “Deus, com devoção/ prepara lento um romance/ em teu coração”, e quem seria Manoel, no dizer dele mesmo, para fazer um poema para um gigante como Marco Antônio? “Saiu o haicaizinho, e olhe lá!”, e lá vai Manoel afundar as ventas no romance de Hardy. Maria, a seu lado, lê A Carne, do Júlio Ribeiro, volta e meia torcendo o pequeno e lindo nariz – que fica mais lindo ainda no inverno, quando o frio avermelha sua ponta. E Manoel não resiste, e tome beijá-lo, em êxtase, deixando Maria meio tonta com tamanho afagamento... E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Ah! Vale lembrar que estamos sob censura desde 11/04/08, a restrição já vai totalizando 765 dias. Abraço pra turma do Estadão, que também atura isso há 287 dias...
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