Frederico Mendonça de Oliveira
“Terremotos no Chile e no Haiti, furacão na França, não sei mais o que não sei onde, mas esse mundo parece que começa a acabar”, conjetura Manoel sob o olhar lúcido de sua adorada Maria. Claro, foi usado como um traste para satisfazer interesses de uma turma que se acha escolhida de Deus, e agora o bicho Natureza naturalmente começa a reagir na medida da lei divina de ação e reação. Seria o começo da Escatologia? Seria a chegada do Armagedon? Será a consumação do Apocalipse? Pois é: estamos nessa transição, e não há volta. O mundo não se recuperará da ação nefasta do ser humano, que o tratou como puta desprezível, usando-o para um projeto fútil e na verdade criminoso, usando o planeta com desprezo, descaso e até instinto destrutivo do próprio habitat, e agora lá vem retorno. A ação perversa do homem criou um processo sem remédio, e nessa virada o negócio vai ser aturar. E que sejamos nisso pelo menos um pouco dignos: se fizemos ou se só participamos, aturemos o troco irreversível com um mínimo de grandeza d’alma. Basta que olhemos para os carros entupindo as ruas do mundo e reflitamos no grau de estupidez que nos impingiram – e no que concordamos e embarcamos nisso. “O automóvel é o maior inimigo do homem e do mundo!”, declara indignado, quase inflamado, Manoel, recordando que nos 25 anos de Arraial das Bagas as ruas se mostram o oposto do que eram. Em 1984, ruas do centro desertas e ar doce, limpo, até com cheiro de flor das 11 horas logo antes do almoço; hoje, ruas entupidas de carros estacionados em intermináveis fileiras ao longo dos meios-fios e uma procissão interminável de carros se deslocando rumo sabe-se lá a quê. Isso é progresso? Isso é aperfeiçoamento, é avanço social? Isso leva a alguma coisa? Existe um resultado prático objetivo e benéfico em viver com carro e passar a fazer dele um instrumento e um jugo? “Pra que tanto carro, meu Deus?, pergunta meu coração”, considera Manoel parafraseando Drummond naquele Poema de Sete Faces. Enter.
Sim, vão morrendo nosso mundo e nossos sonhos. Morreu o Sena, e o Brasil o enterrou como jamais foi enterrado aqui um herói: com honras de ser divinizado. Foi uma bela patacoada histórica, porque de repente um piloto de corridas virou um deus, e foi aquela manifestação de uma histeria coletiva em que pateticamente o poviléu ignaro descarregou sua frustração social de perda de Estado em cima de um simples – embora eficiente – corredor de fórmula um. Isso é pecado, é demonstração de idolatria cega, de descompensação, de burrice, de ignorância, de tacanhez. E ficou, passado tudo aquilo, um silêncio de parvoíce, um silêncio que sucede a barulhada estúpida, e nunca mais se falou na manifestação de hipertrofia de ídolo e atrofia de adoradores combinadas. E depois foram embora os Mamonas Assassinas, e tentaram fazer outra patacoada do tipo do Sena, mas ficou pífio, e continuamos socialmente frustrados e desamparados, comandados e tiranizados por um bando de crápulas depravados de gravata, “e que tudo mais vá pro inferno”, desde que alguém aqueça alguém nesse inverno, como profetizou o rei da récua brasilis, Robertão (Carlos). E Manoel até para pra pensar que desceu o nível: primeiro, Drummond; agora, o Brasa!... “Eu, hem!”, rumina nosso herói, recordando sua admiração pelo primeiro e seu desprezo pelo segundo. Enter.
Bem, e não há como evitar: o Brasil vai se desfazendo em nada. Acaba de morrer Jonny Alf, prógono da Bossa Nova e da modernidade musical popular brasileira. Morreu pra lá, num absconso, lembrado apenas por gente do ramo, e mesmo assim acontecia de até essa gente ter mudado seu rumo. Jonny Alf, nascido Alfredo José da Silva, foi duramente criticado pelo jornalista e historiador José Ramos Tinhorão, que muitos dizem que senta, o mesmo que dizem do bom Alf. Tinhorão acusava o cantor compositor de ser um músico travestido de americano, a começar pelo nome artístico. Não há esquecer, contudo, que a influência imposta pela indústria anti cultural americana levou muitos artistas a ostentar nomes americanóides, e isso ainda vigora. A despeito de ter havido uma onda de descoberta de nomes tendendo ao engraçado, como Kid Abelha e os Abóboras Selvagens – olha o Kid aí...– e João Penca e seus Miquinhos Amestrados, ainda estão aí coisas como Daniella Mercury, Rita Cadillac, Lincoln Olivetti, sem contar a onda estupidíssima de Daianes, Daises´, Deivissons e Deivids que emporcalha as certidões de dezenas de milhares de infelizes, por sinal nesses últimos casos nomes dados por apedeutas de quinta geração. Enter.
Pois quanto à forma de manifestação vocal meio negróide-americanóide de Alf, Tinhorão que vá se roçar no arame farpado: qual dos dois apresentou títulos imortais a nosso cancioneiro e permanecerá vivo enquanto houver gente pensante operando música e história da música no Brasil? Um pirulito azul para quem disser Jonny Alf. “E para não perder a oportunidade, vá à merda, Tinhorão, e limpe-se com suas próprias folhas!”, considera consigo Manoel enquanto Maria lindamente cuida dos gatos e da copa em que eles vêm se unir ao casal. Enter final.
E prosseguem vivos e produzindo pouco e mal João Gilberto, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Oscar Castro Neves e João Donato. É que o contexto corrompe, esvazia, e as coisas não encontram eco fecundo, perdem-se no ar putrefato desses dias de escatologia nos dois sentidos. “Danou-se. Fazer o quê? Se destruíram o Brasil como destruíram, se elegeram Roberto Carlos “rei”, se inventaram breganejo, axé e monstruosidades sonoras deletérias e fizeram isso ser a verdade no país de Tom Jobim e outros gênios, foda-se tudo!”, conclui Manoel enquanto contempla as últimas fotos de Jonny Alf, já velhinho e sempre com aquele ar doce e sereno. “E saiba-se lá que vulcões essa criatura tão gentil abrigou dentro de si!”, pondera. E viva Santo Expedito! Oremos. Bye, babes!
Um comentário:
Ácido, como sempre. Uma perda pouco comentada, que nem sequer será lembrada no fim de semana, de um gênio além de tanta coisa que paira por aí.
A brisa levou o rapaz do bem...
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